Thomas Sankara (21/12/1949 – 15/10/1987) : um percurso revolucionário inacabado?

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Abundam informações sobre a biografia deste líder africano na Internet. Todavia isto não torna ilegítimo que este espaço, Pró-África, cumprindo, em toda a liberdade, o seu papel pedagógico e emancipador, proponha em jeito de efeméride uma breve retrospectiva analítica do pensamento e das acções políticas de Sankara. Para isso, é necessário ter em devida  consideração diferentes abordagens : a política interna e as suas medidas de carácter nacionalista, a abordagem externo-diplomática influênciada pela corrente neomarxista das relações internacionais e, por fim, o carácter inacabado da Revolução Democrática Popular, apesar deste líder ter afirmado semanas antes da sua    morte:“(…) pode-se matar líderes revolucionários mas as ideias permanecem”.


“A Pátria ou a morte, venceremos!” Eis uma expressão predilecta proferida em praticamente todos os discursos oficiais por Sankara, fazendo alusão à importância da “luta” e do “povo” no processo revolucionário anti-imperialista em Burkina Faso. Esta frase sintetiza, de certa forma, o pensamento e as acções deste líder carismático, nacionalista e panafricanista. Vinte e três anos após o seu desaparecimento é légitimo questionar : terá a revolução posta em prática por Sankara triunfado? Terá Sankara equacionado a implementação de uma revolução sem revolucionários? Responder em breves linhas e de forma peremptória a estas interrogações  é  um exercício delicado. Com efeito, trata-se de uma tarefa árdua porque exige o devido enquadramento e noções claras sobre o pensamento e as influências ideológicas de Sankara no contexto pós-colonial africano e de guerra fria. Ora, o mesmo dizia não aceitar etiquetas para caracterizar as acções da Revolução Democrática Popular (rdp), pese embora elegera os profetas Mohamed e Cristo como ídolos e considerar Lenine como um dos maiores líderes que o mundo viu nascer ; a nível regional o seu principal mentor político foi J. Rawlings do Gana.

Abundam informações sobre a biografia deste líder africano na Internet. Todavia isto não torna ilegítimo que este espaço, Pró-África, cumprindo, em toda a liberdade, o seu papel pedagógico e emancipador, proponha em jeito de efeméride uma breve retrospectiva analítica do pensamento e das acções políticas de Sankara. Para isso, é necessário ter em devida  consideração diferentes abordagens : a política interna e as suas medidas de carácter nacionalista, a abordagem externo-diplomática influênciada pela corrente neomarxista das relações internacionais e, por fim, o carácter inacabado da Revolução Democrática Popular, apesar deste líder ter afirmado semanas antes da sua morte:“(…) pode-se matar líderes revolucionários mas as ideias permanecem”[1].

Figura política

Thomas Sankara foi militar de carreira. Nos seus discursos revendicou incessantemente tratar-se de um patriota preocupado com a dignidade e o desenvolvimento do seu torrão natal. Em 1981, foi Secretário de Estado da Informação – ainda que apenas alguns meses, devido à sua demissão – antes de ser Primeiro Ministro sob a presidência de J.B. Ouédraogo. Neste mesmo ano, 1983, ascendeu à Presidência da República. Meses antes, fora preso durante alguns dias por alegadamente ter defendido posições radicais segundo a ala reaccionária do partido CSP (Conseil du Salut des Peuples) dividido em duas principais facções: a reaccionária liderada por quadros mais antigos do partido e a revolucionária por Sankara. Esta facção interna precipitou um golpe de Estado em 1983. O golpe de Estado de 1983, sob a liderança de Blaise Compaoré, favorecia então a tomada de poder da ala revolucionária do CSP e transformava consequentemente Thomas Sankara no quinto chefe de Estado do então Alto Volta.

Sankara incarna assim um projecto político inspirando-se do nacionalismo e recorrendo ao populismo num regime político-militar. O líder espelha junto de jovens e da população uma imagem de energia, orgulho, rejeição de injustiças e esperança. As linhas mestras da sua política e acções foram expostas no DOP[2] (Discurso de Orientação Política) no qual privilegiou a Revolução Democrática Popular[3]. Inspirando-se no marxismo, tinha por principal objectivo a transformação da sociedade, favorecendo o desenvolvimento autocentrado e dando,nomeadamente, mais poderes às classes populares em detrimento da burguesia e de um segmento da elite política. A partir de 1984, ordena a mudança de bandeira, de vários símbolos nacionais e do nome do país: Alto Volta transforma-se em Burkina Faso ou “terra de homens integros” (segundo as línguas nacionais Mossis e Djulai). Em cinco anos, o país conhece ganhos sociais e económicos records, contribuindo para melhorar o nível de vida da população. Todavia, a burguesia compradora, a pequena burguesia urbana, vários administradores de regimes anteriores, assim como os cidadãos avessos à revolução em marcha, foram marginalizados pelo Governo.

As medidas da política interna revolucionária

As principais políticas nacionais foram marcadas por medidas em prol do desenvolvimento socioeconómico e ambiental que podem ser expostas em quatro principais vertentes: (i) a luta contra a corrupção e uma melhor gestão de recursos públicos, (ii) o desenvolvimento económico e social autocentrado, (iii) a promoção da saúde e educação e da cultura ao serviço da revolução, (iv) a luta contra a desertificação:

(i) É promovido um maior contrôlo sobre a gestão da coisa pública, reduz-se os salários do Chefe de Estado, de ministros e altos funcionários do Estado. Criam-se Tribunais Populares da Revolução (TPR) para julgar em público casos de corrupção, nomedamente vários ex-governantes;

(ii) A autonomia e independência económica do país passam por um sistema de produção auto-centrado, priviligiando a apologia “Faso dan Fani” (consumir o que é nacional). As ajudas internacionais são evitadas assim como a participação de empresas capitalistas estrangeiras no processo de desenvolvimento. Em quatro anos, o país consegue ser autosuficiente em matéria de produção alimentar. Uma importante campanha de luta contra a desertificação é priviligiada em todo o território nacional; a reforma agrária diminui o privilégio feudal, redistribuindo terras cultiváveis aos camponeses ;

(iii) São construidas mais escolas, infrastructuras desportivas, hospitais e é posta em prática uma campanha de criação de “um centro de saúde para cada localidade”. A promoção da emancipação das mulheres quer-se parte integrante das medidas do regime. O governo demonstra vontade política em proíbir a prática da excisão genital feminina e a poligamia. Estas duas últimas medidas colidem com alguma resistência de mulheres do mundo rural. São nomeadas mulheres para cargos importantes, como o  de Ministra do orçamento ou ainda da saúde. O nível de alfabetização da população aumenta de 12%  para 22%, sendo as mulheres as principais beneficiárias. O défice público de 695 milhões de CFAs em 1983 é transformado em excedentes na ordem de 2 milhares de CFAs em 1985. Contudo, paralelamente, multiplica-se o número de prisoneiros políticos no país; cerca de 2600 professores qualificados são despedidos e substituidos por militantes revolucionários sem formação pedagógica no sector da educação ;

(iv) Para proteger o meio ambiente, uma importante campanha de luta contra a desertificação é levada a cabo através da operação “a cada localidade um bosque.

Sendo dois sectores interligados, as acções internas influenciaram a ossatura das relações externas regionais e internacionais do Burkina Faso.

Conduta política e diplomática externa

Sankara adopta uma conduta externa anti-imperialista e contesta o néocolonialismo, por considerar esta prática difusa nas ajudas exteriores. A influência ideológica néomarxista guia a sua análise das relações de força e dominação na cena internacional. Assim, adopta uma postura política próxima de regimes considerados progressistas, como o da Líbia de M. Khadafi, Gana de J.Rawlings, Cuba de F. Castro, ou ainda Uganda de Y.Musseveni. Nas tribunas internacionais (onu e oua), defende o panafricanismo mas também o não reembolso (por parte de países pobres e africanos) da divída contraída junto do fmi e do Banco Mundial. Como contra-proposta, exorta os outros Chefes de Estado e de Governo africanos a promover a criação do “Clube de Adis-Abeba”, tendo como objectivo uma campanha contra o endividamento excessivo.

De ressalvar que tanto as acções internas como as externas imprimidas pela revolução popular encontraram resistências, barreiras e limites. Resistências e barreiras a nível interno e limites além fronteiras.

Balanço da revolução e herança pós Sankara

A partir de 1985, assiste-se a uma certa deriva dos Comités de Defesa da Revolução (cdr). Em nome da “emancipação feminina” e da luta contra a prostituição, todas as mulheres controladas na rua por um agente do cdr, entre as 20h e as 2h da madrugada, sem provas de identificação, eram imediatamente detidas. Antes de serem soltas, tinham que apresentar provas concretas de que não eram prostitutas. Quanto à luta contra a poligamia, as principais victimas – nomeadamente as mulheres do meio rural – manisfestaram-se contra a medida, defendendo a prática como sendo benéfica para aumentar a mão de obra comunitária.

O Tribunal Popular Revolucionário, instrumento criado para lutar contra a corrupção, conhece derivas. Os acusados não têm o direito de ser representados por advogados de defesa, além de serem obrigados a provar a sua inocência em público, na rádio e televisão estatais. Por causa de uma greve contra certas práticas do regime, cerca de 2600 professores são despedidos e substituídos por agentes da revolução sem formação pedagógica. Para além disso, a manifestação de alguns segmentos da sociedade cívil (sindicatos por exemplo), bem como dos partidos de oposição, continua proibida, à semelhança do que acontecera nos regimes anteriores. Estas derivas contribuem, para o enfraquecimento do regime a partir de 1985.

Aumentam as contestações populares. Blaise Compaoré, que controlava o essencial do poder militar, começa a manifestar ambição de substituir Sankara na Presidência. Acresce os diferendos políticos com Hophfouët-Boigny  da Costa do Marfim, assim como os desentendimentos com a antiga potência colonizadora que agia através da rede de influências da Françafrique. De salientar que, na época tanto Boigny, como Mitterand e mesmo a cia (The Central Intelligence Agency) não viam com bons olhos uma provável propagação da Revolução Democrática Popular na África  ocidental.

Neste contexto tenso, a 15 de Outubro de 1983, Thomas Sankara e doze dos seus colaboradores são fuzilados por militares no palácio da Presidência. Terminara assim o processo revolucionário. Caem também por terra os ideais daquele que defendera “Viver africano para viver livre e digno”[4].

Vinte e três anos depois, Sankara não é no seu torrão natal mais do que um mártir da revolução. Os ideais defendidos deixaram marcas indeléveis e suscitam nostalgia junto de alguns segmentos da população local e não só. Contudo, o poder instituído por Blaise Compaoré, seu sucessor pela via das armas, procurou, não sem sucesso, ofuscar todas as marcas do Sankarismo. O novo regime mudou de paradigma de cooperação, restabelecendo o capitalismo de Estado, abolindo várias práticas revolucionárias como por exemplo o desporto, obrigação individual de todos enquanto terapia de massa. Decorridos vinte e três anos sobre o último golpe de Estado, Compaoré ainda é Presidente deste país oeste-africano.

Em jeito de conclusão, convém destacar não só os importantes ganhos socioeconómicos que beneficiaram as classes populares durante os cinco anos de regime revolucionário, mas também alguns erros políticos cometidos pelo regime. O assassinato prematuro de Sankara contribuiu para deixar inacabada a Revolução popular inciada em 1983. Por seu lado, a contestação crescente contra certas práticas do regime a partir de 1985 serviram para ilustrar alguns limites da revolução, assim como um certo défice de consciência revolucionária no país. Este défice foi inegável e erradamente relegado para segundo plano por Sankara e pelo regime. Se considerarmos a situação política e económica actual de Burkina Faso (um dos pma – Países Menos Avançados – mais pobres de África, segundo os critérios do pnud) podemos constatar que o povo burkinabé ainda está longe de vencer a batalha do desenvolvimento. Uma das vias para se inverter esta situação é, sem duvida, a de promover um desenvolvimento que tenha em consideração a evolução do contexto político e económico mundial. Será todavia este impulso possível sem um renovar das elites dirigentes, sejam elas políticas, económicas,  militares…?

João da Veiga

Referências

Entrevista a Thomas Sankara http://www.thomassankara.net/spip.php?article921#outil_sommaire_0 ;

Filme sobre a vida política de Sankara http://video.google.com/videoplay?docid=-1568227149281410076#

Discours et contrôle politique : les avatars du Sankarisme » http://www.politique-africaine.com/numeros/pdf/033011.pdf

« Les CNR face au monde rural : le discours à l’épreuve des faits »http://www.politique-africaine.com/numeros/pdf/033039.pdf

Carina Ray, Who really killed Thomas Sankara ? : http://www.pambazuka.org/en/category/features/45420

Politique Africaine, “Au Sport les citoyens”: http://www.politique-africaine.com/numeros/pdf/033059.pdf


[1] http://www.thomassankara.net

[2] http://www.thomassankara.net/spip.php? ; article51

[3] T. Sankara e David Gakunzi (1991), Oser inventer l’avenir : la parole de Sankara (1983-1987), Parthfinder Press et l’Harmattan.

[4] Um dos slogans prononciados em vários discursos de Sankara.

 

 

ORIGINALMENTE PÚBLICADO EM Pro Africa

Entulho Cósmico

Toda a palavra é um verso e todo o verso é um infinito

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