A arte de acreditar

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o cinema segundo Andrei Tarkovsky

por F. Fischl

"Fica perfeitamente claro que o objetivo de toda arte - a menos, por certo, que ela seja dirigida ao consumidor, como se fosse uma mercadoria - é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam, para que vive o homem, e qual o significado de sua existência. Explicar às pessoas, a que se deve sua aparição nesse planeta, ou, se não for possível explicar, ao menos propor a questão." Andrei Tarkovsky em Esculpir o Tempo, da editora Martins Fontes.

Nos filmes de Andrei Tarkovsky, algumas perguntas parecem tão importantes quanto suas respostas. Sua obra se apresenta como um meio de assimilação do mundo, um instrumento que busca compreendê-lo. A expressão artística seria uma experiência subjetiva, através da qual o homem procura apreender a realidade.

Para Tarkovsky, uma das grandes particularidades da arte, é sua intenção de persuadir as pessoas não através de argumentos racionais, mas sim a partir do impacto emocional. A arte tem de ser sentida, pois o artista a impregnou como uma energia que transcende a razão de um diálogo meramente jornalístico. Desta forma um espírito de comunhão entre o artista e o público é essencial, pois o criador não busca a comunicação através do científico. Filmes são feitos para que os homens tentem se comunicar, partilhar informações e assimilar experiências.

Exatamente pelo fato de que a arte não se exprime em termos lógicos, nem sempre é possível fazer com que uma mensagem seja compreendida pelo público. Não se pode forçar ninguém a apreciar um filme. Nisso reside parte do talento do artista. Muitas pessoas não aceitavam os filmes de Tarkovsky, e os consideravam entediantes. Para outra parcela do público, suas películas constituíam intensas reflexões filosóficas. A princípio o que Tarkovsky tenta dizer é que para gostarmos de arte, e particularmente de seus filmes, precisamos ter vontade e capacidade de se entregar ao artista. Numa alusão religiosa, o diretor diz que precisamos ter predisposição e muita fé. Muitas vezes, as pessoas não estão dispostas a refletir, então ouvimos "Não gosto deste filme, é muito cansativo."

Para Tarkovsky, Goethe está completamente certo, quando diz que ler um bom livro é tão difícil quanto escrevê-lo. Uma boa obra de arte, deve contar com bons intérpretes. Numa boa obra de arte é impossível separar qualquer um de seus componentes, seja o conteúdo ou a forma, pois uma obra prima transcende qualquer classificação.
Pela falta de um público mais crente, Tarkovsky chega a afirmar que a arte não ensina nada a ninguém, "uma vez que em quatro mil anos não aprendemos nada." Se fossemos capazes de nos entregar as obras primas e assimilássemos completamente seu conteúdo, "já teríamos nos transformado em anjos há muito tempo."

Na obra do diretor espanhol Luis Buñel, Tasrkovsky chega a vislumbrar um grande cineasta. Para ele, Buñel sabe que a estrutura estética não necessita de manifestos, pois a verdadeira força da arte reside no poder de persuasão. Desta maneira o artista torna-se um ideólogo e apologista de seu tempo pois "A grandeza e a ambigüidade da arte consiste no fato de que ela não prova, não explica e não responde às perguntas, mesmo quando emite sinais de advertência. Sua influência tem a ver com a sublevação ética e moral." Com Un Chien Andalou, Buñel, assim como Tarkovsky, teve que enfrentar um público enfurecido que esperava do cinema uma simples sessão de divertimentos. Para Tarkovsky, Buñel é um verdadeiro artista pois ele se dirige ao público não em linguagem de manifesto, "mas no idioma emocionalmente contagioso da arte."


O autor atrás das câmeras


O autor e seu público

Para Tarkovsky, muitas das anomalias na relação entre o público e o autor se deve a posição pouco definida que o cinema ocupa, localizando-se entre a arte e a indústria. Por tratar-se de uma produção muito dispendiosa, a sétima arte exige um retorno de investimento, acrescido de lucro. Desta forma, um filme, enquanto produto, faz sucesso ou fracassa e seu valor artístico acaba sendo relacionado às leis de mercado. Nunca nenhuma outra arte, esteve tão ligada a critérios desta natureza.

Devemos lembrar que alcançar o sucesso não deve ser o objetivo de nenhum autor. Segundo Tarkovsky, em função da consciência desenvolvida que tem de seu espaço e tempo, o artista é um vox populi por natureza. Ele é a voz daqueles que não tem o preparo para expressar sua concepção de realidade. Mas mesmo diante do caráter populista de seu trabalho, não é inato ao artista o dom do sucesso popular tão necessário a manutenção do cinema. Ao longo de sua careira na União Soviética, muitas vezes Tarkovsky foi acusado de ter-se distanciado da realidade, e evitado se expressar como 'voz do povo'. Seus filmes eram considerados restritos a uma parcela muito pequena do público. Em diversas entrevistas o diretor declara-se ressentido com estas acusações que para ele não fazem sentido.

"A concepção de uma grande obra é sempre ambígua, sempre tem duas faces, como diz Thomas Mann; ela é multifacetada e indefinida como a própria vida. O autor não pode, portanto, esperar que sua obra seja entendida de uma forma específica e de acordo com a percepção que tem dela. Tudo que pode fazer é apresentar sua própria imagem do mundo, para que as pessoas possam olhar esse mundo através dos seus olhos e se deixem impregnar por seus sentimentos, dúvidas e idéias..." Andrei Tarkovsky em Esculpir o Tempo, da editora Martins Fontes.

Em Persona de Ingmar Bergman, Tarkovsky encontra um filme que é uma verdadeira obra de arte. Um filme que a cada vez que revemos, encontramos algo novo, e nos relacionamos de uma maneira diferente com seu mundo. Tal qual a obra de Mann, trata-se de um filme com múltiplas faces, e por isso, é de tanto valor para a sétima arte.
O autor nunca pode abrir mão da contradição e outros recursos, em nome de se tornar mais acessível e padronizado. Ao agir desta forma, está tirando todo o valor artístico de sua obra. O autor não pode se propor o objetivo de ser simples e compreensível, isto seria tão absurdo quanto se propor ser incompreensível. De acordo com Tarkovsky, nada seria mais prejudicial à arte que o nivelamento por baixo que caracteriza o cinema comercial. Para ele os diretores que dizem não se preocupar com a reação do público, não poderiam estar mais equivocados. Não há nada de errado em não se preocupar em agradar o público, posição aliás assumida por Tarkovsky, contudo é perfeitamente normal sempre esperar uma resposta dos espectadores. É saudável para um cineasta esperar que seu filme seja amado por alguns.

Para que o autor seja honesto e sincero com público, ele deve primeiramente ser honesto consigo mesmo e não deixar que preocupações que não sejam relacionadas a obra interfiram no processo criativo. Um autor nunca deve tornar-se dependente do público ou de quem quer que seja, pois ao fazer isso, estará criando uma obra com inflexões que não são suas. O autor e mais ninguém deve deter o processo de criação.
Observando a dualidade industria e arte, existente na sétima arte, poderemos compreender por que Tarkovsky diz que o cinema não conseguiu produzir nenhum autor digno de se colocar no patamar dos grandes autores da literatura. Para Tarkovsky, o cinema ainda conta com o problema de não ter conseguido definir seu caráter específico e sua própria linguagem, assim não poderia ter um autor tão representativo quanto Shakespeare.


Cena de Solaris

Tarkovsky
Para muitos críticos, a maior qualidade dos filmes de Andrei Tarkovsky, é constituir, a partir dos recursos oferecidos pelo cinema, uma obra de profundidade filosófica sem igual. O público, habituado ao fato de que o cinema é sempre romance com ação e personagens, não encontrando o final feliz na obra do diretor russo se sente desapontado.

O cinema ainda é uma arte muito nova e suas possibilidades foram muito pouco exploradas. Segundo Tarkovsky: "Ainda estamos em dúvida quanto ao material em que deve ser modelada a imagem cinematográfica, ao contrário do pintor, que sabe que vai trabalhar com as cores, ou do escritor que atingirá seu público através das palavras. O cinema como um todo ainda está em busca daquilo que o determina; além disso, cada diretor está tentando encontrar sua voz individual, ao passo que todos os pintores usam cores. Se esse extraordinário meio de apelo às massas que é o cinema vai tornar-se um dia uma verdadeira forma de arte, muito trabalho ainda espera tanto pelos diretores quanto pelo público."

Estudante do prestigiado Instituto de Cinematografia do Estado (VGIK), em Moscou, Tarkovsky produziu uma estréia que foi aclamada internacionalmente. Seu filme, A Infância de Ivan foi agraciado com Leão de Ouro no Festival de Cinema de Veneza de 1962. A história gira em torno do personagem de Burlaiev, um garoto de 12 anos cuja família foi morta na segunda guerra mundial. Enquanto Burlaiev é incumbido de tarefas de espionagem no território nazista, Tarkovsky constitui através de um lirismo único, sua visão sobre a guerra.

Seu segundo filme, Andrei Rublev levou três anos para ficar pronto e também foi premiado, desta vez pelo festival de Cannes em 1966. Problemas com o Departamento de Filmes Soviéticos, ocasionaram um atraso de quatro anos na liberação da película para exportação. O tempo que levou para chegar ao público certamente infringiu no diretor um profundo desgosto, condição que ironicamente podemos relacionar com o personagem do próprio filme. A temática de Andrei Rublev certamente retrata a posição de Tarkovsky com relação aos problemas enfrentados pelos artistas soviéticos de sua época. A história mostra a vida de um pintor do século XV que perde a fé na sociedade em Deus e na própria arte, alcançando revitalização espiritual numa cena antológica. O filme propõem questões relevantes com relação ao papel desempenhado pelo artista na sociedade. Deveria Rubelev participar da problemática política e social de sua época ou apenas retrata-la com seu pincel? São perguntas extremamente importantes que Tarkovsky voltaria a discutir com mais profundidade em seu flerte com a literatura no famoso autobiográfico Esculpir o Tempo.

Em 1972, Solaris é filmado como uma resposta russa a 2001 de Stanley Kubric. Ficção científica metafísica, sobre um psicólogo que é enviado a uma estação espacial para investigar estranhas alucinações que provocam mortes e suicídios na tripulação. Lento, perturbador e hipnótico, Solaris é um filme único em seu gênero. A idéia da materialização dos medos e angústias individuais se mostrou extremamente prolífica neste filme. Assim como Stalker, sua segunda investida na ficção científica, Solaris não foi bem recebido pelo Estado e pelo grande público. Tarkovsky se mostrava um diretor muito elitista para grande aceitação. Em 2002 a refilmagem americana de Solaris, resgata a importância de sua temática, propiciando a divulgação do diretor russo a platéias medíocres aficionadas por Emergency Room e pela vulgaridade de Star Trek.

O conteúdo de O Espelho de 1976, também encontrou problemas com o Estado Soviético. Muitas foram as críticas e objeções a este filme, e sua estréia no ocidente teve de esperar alguns anos para ser liberada pelo departamento de exportação. Obra extremamente pessoal sobre a vida na Rússia durante a segunda guerra mundial. O Espelho resgata a infância de um artista durante a guerra e o papel de sua mãe, uma estenografa do Estado, em sua criação. Poema visual, o filme conta com a participação da mãe do diretor no papel da mãe do artista e de Arseni Tarkovsky, o pai, recitando suas poesias. Em alguns trechos do filme, a cultura de imigrantes latinos na Rússia e retratada.

Stalker de 1979, é um filme sobre um lugar misterioso, a 'Zona' onde todos os desejos humanos se realizam. Somente algumas pessoas conhecidas como stalkers são capazes de chegar ao lugar. Um destes stalkers guia dois intelectuais à zona. Filme metáfora sobre as aspirações humanas foi o último trabalho de Tarkovsky em sua terra natal.

Cansado de ouvir que ninguém queria seus filmes, e decepcionado com as problemáticas que envolviam o Estado e a distribuição de seus filmes, Tarkovsky, no começo dos anos 80, começa a trabalhar fora da URSS. Nostalgia de 1983, sua próxima obra foi produzida na Itália e trata de um tema biográfico. Um artista no estrangeiro, castigado pela saudade de casa e impossibilitado de viver em seu país ou longe dele.
O último filme da breve filmografia de Tarkovsky, O Sacrifício, foi filmado na Suécia em 1986. Extremamente pessimista a obra é tida como um testamento do diretor que faleceu um ano depois. Na equipe, ele emprega vários membros colaboradores de Ingmar Bergman incluindo o ator Erland Josephson e o fotógrafo Sven Nykvist. Josephson interpreta um ator intelectual que vive isolado com a mulher e o filho. Em meio a delírios sobre o fim do mundo e uma guerra nuclear, Tarkovsky nos adverte sobre o que considerava uma questão crucial. A Falta de espaço em nossa cultura para a existência espiritual. O Sacrifício ganhou um prêmio especial do júri em Cannes, meses depois o diretor é vitimado pelo câncer de pulmão aos 54 anos.


Com os atores de Stalker

F. Fischl é Bacharel em Comunicação Audiovisual pela Univ. Federal de São Carlos
filipe@wezen.com.br

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A INFANCIA DA ANGUSTIA

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10:18

Tramo a chegada e a saída das longas vielas avessas

E não alcanço o que pretendia...

o mar de mim,

encoberto do manto neblina de obsessões passageiras.

Um épico sentimento de fracasso se espreguiça pelos lados

como o felino pronto a abocanhar o que lhe for entrega a comer.

Estranho a calmaria do dia

enquanto o sol lá fora estranha meu alvoroço silencioso,

respondo que ainda é noite para mim

e ele cala-se num canto desconfiado

procurando a sombra dos meus pensamentos mais longínquos...



































João Leno Lima

17-03-2010

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02:11

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09:59



Num processo que envolve madrugada e silencio

eterniza-se em mim o fim de mais um instante.

A passagem por essas longas transições

entre os meandros das escadarias e olhares perplexos das mulheres

indo comprar seu cotidiano na feira.

Se amontoa em mim o inevitável recomeço.

O olhar para as nuvens paradas relevam-se

longos copos de café amargos de pressa desolada.

Os passos nas esquinas; como longos trens;

atravessando um precipício...

com a irreparável diferença

que me sinto o próprio precipício...



































João Leno Lima

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