CAOS

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O Caos nunca morreu. Bloco intacto & primordial, único monstro digno de adoração, inerte & espontâneo, mais ultravioleta do que qualquer mitologia (como as sombras à Babilônia), a original & indiferenciada unidade-do-ser ainda resplandece, imperturbável como as flâmulas negras frenética & perpetuamente embriagada dos Assassinos1. O caos é anterior a todos os princípios de ordem & entropia, não é nem um deus nem uma larva, seu desejos primais englobam & definem todas coreografia possível, todos éteres & flogísticos sem sentido algum: suas máscaras, como nuvens, são cristalizações da sua própria ausência de rosto. Tudo na natureza, inclusive a consciência, é perfeitamente real: não há absolutamente nada com o que se preocupar. As correntes da Lei não foram apenas quebradas, elas nunca existiram. Demônios nunca vigiaram as estrales, o Império nunca começou, Eros nunca deixou a barba crescer. Não. Ouça, foi isso que aconteceu: eles mentiram, venderam-lhe idéias de bem & mal, infundiram-lhe a desconfiança de seu próprio corpo & a vergonha pela sua condição de profeta do caos, inventaram palavras de nojo para seu amor molecular, hipnotizaram-no com a falta de atenção, entediaram-no com a civilização & todas as suas emoções mesquinhas. Não há transformação, revolução, luta, caminho. Você já é o monarca de sua própria pele – sua liberdade inviolável espera ser completa apenas pelo amor de outros monarcas: uma política se sonho, urgente como o azul do céu. Para lograr abrir mão de todos os acentos & hesitações ilusória da história, é preciso evocar a economia de uma Idade da Pedra lendária – xamâs & não padres, bardos & não senhores, caçadores & não policiais, coletores paleoliticamente preguiçosos, gentis como sangue, que ficam nus para simbolizar algo ou se pintam como pássaros, equilibrados sobre a onda da presença explícita, o agora-sempre atemporal. Agentes do caos lançam olhares ardentes a qualquer coisa ou pessoa capaz de suportar ser testemunha de sua condição, sua febre por lux et voluptas. Estou desperto apenas no que amo & até o limite do terror – todo o resto é apenas mobília coberta, anestesia diária, merda para cérebros, tédio sub-réptil de regimes totalitários, censura banal & dor desnecessária. Avatares do caos agem com espiões, sabotadores, criminosos do amor louco, nem generosos nem generosos nem egoístas, acessíveis como crianças, semelhantes a bárbaros, perseguidos por obsessões, desempregados, sexualmente perturbados, anjos terríveis, espelhos para a contemplação, olhos que lembram flores, piratas de todos os signos & sentidos. Aqui estamos, engatinhando pelas frestas entres as paredes da Igreja, do Estado, da Escola & da Empresa, todos os monolitos paranóicos. Arrancados da tribo pela nostalgia selvagem, escavamos em busca de mundos perdidos, bombas imaginárias. A última proeza possível é aquela que define a própria percepção, um invisível cordão de ouro que nos conecta: dança ilegal pelos corredores do tribunal. Seu eu fosse beijar você aqui, chamariam isso de um ato de terrorismo – então vamos levar nossos revólveres para a cama & acordar a cidade à meia-noite como bandidos bêbados celebrando a mensagem do sabor do caos com um tiroteio.



bY Hakim Bey

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A REVOLUÇÃO SURREALISTA ANTES E SEMPRE

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08:55

Pintura de Rene Magritte
texto de Eclair Antonio Almeida Filho



Aquilo que pode nos ter separado é muito menos importante do que aquilo que nos reuniu.André Breton
Desde suas primeiras experiências coletivas, o Surrealismo foi marcado tanto por experimentações das variadas nos campos da linguagem, quanto por encontros, crises, rupturas e adesões. Neste artigo, veremos o percurso do Surrealismo desde as suas primeiras práticas e manifestações até a crise de 1929, com os ataques recíprocos entre André Breton e ex-membros, expostos no Segundo Manifesto do Surrealismo e no panfleto “Un cadavre” contra Breton.
Vale lembrar que, em 1916, André Breton havia conhecido Jacques Vaché, um surrealista antes mesmo de o termo “surrealismo” ser criado. Em 1919, aos 23 anos, Vaché se suicida depois de tomar uma dose excessiva de ópio, deixando como legado literário suas Cartas de Guerra , publicadas em Littérature , as quais deram a Breton a noção corrosiva e subversiva do “Umour” (Humour, humor, grafado sem H).
De 1919 a 1924, depois de cinco anos de atividades intensas e sem interrupção, eis algumas das ações surrealistas: a publicação de relatos de sonhos, poemas, manifestos na Revista Littérature (1919-1924), a instituição de um tribunal para julgar o escritor Maurice Barrès sob a acusação de traição, além das sempre conturbadas manifestações públicas. Em 1920, Breton e Philippe Soupault publicam Les Champs magnétiques , com as experiências textuais que revelariam, mais tarde, para Breton o funcionamento da escritura automática.
Em 1923, Robert Desnos junta-se a Breton e sua turma, recém rompidos com o Dadaísmo, e demonstra desde já uma grande facilidade para “pegar no sono” a fim de ditar o discurso do inconsciente. Nesse mesmo ano, Desnos publica em Littérature seus relatos de sonho e, com Marcel Duchamp, os textos de Rose Sélavy , que se parecem, antes, com uma série de jogos de palavras extremamente trabalhados num laboratório verbal do que com livres manifestações do inconsciente.
Foi, em 1922, ao romper com Tristan Tzara e o Dadaísmo que André Breton, Philippe Soupault, Paul Éluard e Louis Aragon começaram a criar as bases para o surrealismo, expostas no Primeiro Manifesto Surrealista (1924). Conforme Breton, em suas entrevistas publicadas em 1960, marcam, essencialmente, tais experiências a escritura automática e as induções ao sono por meio de hipnose:
Quand paraît le premier manifeste, soit en 1924, il a derrière lui cinq années d'activité expérimentale ininterrompue entraînant un nombre et une variété appréciables de participants. Il faut dire que, même à distance, ces deux champs de prospection, l'écriture automatique et les apports du sommeil hypnotique sont aussi difficiles à circonscrire l'un que l'autre; (BRETON, 1960, p. 77)
No Primeiro Manifesto , tais experiências se apresentam nos relatos de sonhos, na busca pelo maravilhoso. Os surrealistas mergulham no mais profundo do inconsciente, do sonho e da imaginação livre para lá verem “o funcionamento real do pensamento”. Breton, este sonhador definitivo, propõe, como nos diz Maurice Blanchot, a exploração do não-manifesto, ou seja, do maravilhoso num mergulho entre “La vie éveillée” (a vida acordada) e “la vie de rêve” (a vida de sonho).
Para o autor de Nadja , a busca pelo maravilhoso é uma violenta reação contra o empobrecimento e a esterilidade dos modos de pensar resultantes de séculos de racionalismo. No Primeiro Manifesto , Breton aproxima o maravilhoso do belo: “Le merveilleux est toujours beau, n'importe quel merveilleux est beau, il n'y a même le merveilleux qui soit beau.”(BRETON, 1960, p. 80). É na surrealidade ( surréalité ) que André Breton e seus companheiros procuram o ponto onde todas as contradições e oposições deixam de existir. De acordo com Gaëton Picon, a surrealidade é “réalité et rêve, esprit et monde: au delà de toutes les antinomies et de toutes les séparations, il est totalité parce qu'il est surrationalité” (In Picon, 1954, p. 227). Para se atingir a surrealidade, deve-se, segundo Breton, “reescrever os direitos do homem”, buscar “a liberação total do homem”, a qual pressupõe um desregramento de todos os sentidos (“déréglèment total des sens”).
No fim de 1924, por ocasião das homenagens, na França, a Anatole France, récem-falecido, Breton institui, dessa feita, um tribunal para julgá-lo, pois os surrealistas o consideravam como um defensor da burguesia e de idéias como as de Família, Propriedade, Religião e Estado. Além do julgamento, Breton publica um panfleto contra Anatole France: “Un cadavre”. Nele, Breton participa com o texto “Refus de inhumer” (Recusa de sepultar, inumar ou enterrar), cujo título mostra que os surrealistas recusam-se a participar dos funerais de Anatole France.
Além de France, Breton dirige seus ataques contra Pierre Loti e Maurice Barrès:
(Pierre) Loti, (Maurice) Barrès, (Anatole) France, marquons tout de même d'un beau signe blanc l'année qui coucha ces trois bonhommes: l'idiot, le traître, le policier. Ayons, je ne m'y oppose pas, pour le troisième un mot de mépris particulier. Avec France, c'est un peu de la servilité humaine qui s'en va. (In Courrière, 1999, p. 107).
Os signatários do panfleto se despedem de seus leitores alertando que estariam de volta no próximo cadáver nacional: “À la prochaine occasion il y aura un nouveau cadavre” (In Courrière, 1999, p. 107).
A partir de 1925, com o lançamento da Revista La Révolution Surréaliste , os surrealistas passam a se interessar por questões políticas e filosóficas ligadas ao Marxismo e ao Partido Comunista. Intensificam-se suas atividades políticas. Cria-se o “Bureau des recherches surréalistes”. O surrealismo passa a unir poesia e ação revolucionária para “transformer le monde” e “changer la vie”, aliás proposições respectivamente retomadas de Karl Marx e Arthur Rimbaud.
Ao ser questionado por André Parinaud sobre se as dificuldades que teria encontrado, entre 1926 e 1929, ao tentar levar à frente ao mesmo tempo a atividade interior (surrealista) e a atividade exterior (política) não teriam de certa maneira paralisado os meios surrealistas de expressão, André Breton responde que, ao contrário, esse foi um dos períodos mais produtivos do Surrealismo tanto no plano da linguagem verbal quanto no plano plástico. Para confirmar sua afirmação, Breton enumera as importantes obras surrealistas escritas nesse período:
Aragon publie le Paysan de Paris et Traité du Style, Artaud le Pèse-nerfs, Crevel L'Esprit contre la raison, Desnos Deuil pour Deuil et La liberté où l'amour, Éluard Capitale de la douleur et L'amour la Poésie, Ernst La femme 100 têtes, Péret Le grand jeu, moi même Nadja, et Le surréalisme et la peinture. (BRETON, 1960, p. 134)
Em relação ao plano plástico, Breton observa a contribuição no campo da invenção que artistas como Arp, Ernst, Masson, Miró, Man Ray, Tanguy, - e de seu lado Picasso operaram. (BRETON, 1952, p. 134)
Para se formar uma literatura crítica do Surrealismo, que aliasse poesia e ação, além dos lançamentos do Primeiro Manifesto e da Revista Révolution Surréaliste , de acordo com Breton, outras 5 (cinco) etapas contribuíram decisivamente para tal, a saber:
- a publicação do trato “La révolution surréaliste d'abord et toujours” (1925), que serviu de prelúdio para a tentativa de formação de um intergrupo com a participação do grupo surrealista, dos membros mais ativos da Revista Clarté , do folheto belga Correspondance e da revista Philosophies , de maneira a unificar tanto quanto possível seu vocabulário;
- a tentativa “abortada” de se criar, para esse intergrupo, uma revista, a qual se chamaria La guerre civile ;
- a publicação de Légitime défense (1926), de André Breton;
- a publicação em 1927 de Au grand jour , uma coletânea de cartas endereçadas por André Breton, Louis Aragon, Paul Éluard, Pierre Unik e Benjamin Péret tanto aos comunistas quanto a membros do Surrealismo;
- e a assinatura, em 1929, por André Breton e Louis Aragon, do texto “À suivre, petite contribution au dossier de certains intellectuels à tendance révolutionnaire”, que seria como uma obra que desataria as questões levantadas nos quatro textos supra-relacionados. (Breton, 1960, p.120-121)
Embora as atividades do grupo desenvolvam-se, nesse período de 1926 a 1929, de maneira muito intensa e produtiva para uma união entre poesia e ação revolucionária, já começavam a se esboçar os fatores que levariam o grupo à sua mais grave crise, a de 1929, exposta por Breton no seu Segundo Manifesto do Surrealismo , publicado no último número da Révolution Surréaliste , em novembro de 1929. Em 1929, o movimento fora sacudido por uma crise, provocada por desarcordos sobre o sentido de sua adesão ao marxismo, questão levantada desde 1926, a pedido de Pierre Naville, e resolvida através de suas vicissitudes.
Insatisfeito com membros que não queriam tomar partido na ação revolucionária nem se preocupavam com problemas concretos, Breton expulsa do grupo fundadores do movimento como Philippe Soupault, por causa de sua orientação excessivamente literária; Robert Desnos, que havia ido para o Jornalismo e só se interessava pela escritura automática; Antonin Artaud, que, além de protestar contra as preocupações políticas do Surrealismo, em À la grande nuit (1927), queria, nas palavras de Breton, “par ostentation faire répresenter devant l'Ambassade de Suède, Le Songe , de Strindberg”. (Duplessis, 1953, p. 16) Em 1928, Pierre Naville deixa a direção da Revista Révolution Surréaliste , que passa para as mãos de Breton.
Entre outras causas da crise, cite-se a não-aceitação por parte de Breton da entrada no surrealismo do grupo da revista Grand Jeu , que encara o Surrealismo, na via aberta por Rimbaud, sob seu “aspect ésotérique et mystique”. Argumenta Breton que não se trata mais de “s'évader dans un monde supra-terrestre”, mas sim de fazer “faire oeuvre positive ici-bas” (In Duplessis, 1953, p. 17). Nessa época, os “puros representantes do Surrealismo” seriam, além de Breton, Louis Aragon, Paul Éluard e Pierre Unik.
Em 1929, no último número da Révolution Surréaliste , André Breton publica o Second manifeste du Surréalisme , no qual denuncia e ataca ferozmente dissidentes do Surrealismo e apresenta sua posição política favorável ao materialismo histórico. Se, no Primeiro Manifesto , Breton invoca a Psicanálise para buscar a liberação total do homem através de experiências como o sono induzido, o relato de sonhos, a escritura automática, no momento em que escreve o Segundo Manifesto , ele recorre ao materialismo dialético a fim de fazer a Revolução. Leitor de Hegel, Breton procura um ponto onde as contradições cessem de existir, num fenômeno de suspensão, expresso pelo conceito hegeliano de Aufhebung. Assim, conforme Breton,
Tout porte à croire qu'il existe un certain point de l'esprit d'où la vie et la mort, le réel et l'imaginaire, le passé et le futur, le communicable et l'incommunicable, le haut et le bas cessent d'être perçus contradictoirement. Or, c'est en vain qu'on chercherait à l'activité surréaliste un autre mobile que l'espoir de détermination de ce point. (Breton, 1996, p. 72-73)
Para atingir esse ponto, os surrealistas deveriam partir, com suas próprias armas, adquiridas em seus anos de prática e de experiências, para a revolta e a Revolução, fazendo dogma da insubmissão total. Deve-se “ruiner les idées de famille, de patrie, de religion” (Breton, 1996, p. 77). Assim, Breton prega que não se deve mais adorar aqueles escritores e artistas “ancestrais”, aliás citados como surréalistas no Primeiro manifesto . Diz que “en matière de révolte aucun de nous ne doit avoir besoin d'ancêtres” (Breton, 1996, p. 76). Compreensivelmente, em seu ataque aos ancestrais, no qual Breton se dirige “contre Sade, Rimbaud, Lenine, Baudelaire, Poe ( Crachons sur Poe)”, o líder do surrealismo excetua Lautréamont (Breton, 1996, p. 76). Tal atitude se justifica pelo fato de que, além da manifesta revolta contra a sociedade que Lautréamont empreende em seus Cantos de Maldoror, é extremamente surpreendente a semelhança de estilos de ataques pessoais entre o texto “Gémissements poétiques”, de Lautréamont, e o Segundo Manifesto .
Além dos ancestrais, entram na lista do ajuste de contas de Breton ex-membros do surrealismo, como Pierre Naville, Phillippe Soupault, Antonin Artaud, Roger Vitrac, Robert Desnos, Georges Ribemont-Dessaignes, os membros da revista Grand jeu , e um escritor que não fazia parte do Surrealismo: Georges Bataille. Ex-membros como Jacques Prévert e Raymond Queneau não são mencionados.
Em 15 de janeiro de 1930, a resposta a Breton dos dissidentes atacados no Segundo Manifesto vem sob a forma do panfleto “Un cadavre”, que retoma o título e o formato do “Cadavre” contra Anatole France em 1924. No alto da imensa fotografia representando Breton de olhos fechados, uma lágrima de sangue no canto das pálpebras, a fronte cingida por uma coroa de espinhos. Tal idéia de representar Breton como Jesus Crucificado teria partido de Desnos, que a justifica com termos místicos: no momento em que se lança o panfleto, Breton ainda tem 33 (trinta e três) anos, idade em que Cristo foi morto e crucificado. Como epígrafe, o panfleto traz a conclusão do outro “cadavre”: “il ne faut pas que cet homme fasse de la poussière”.
12 (doze) são seus signatários: Jacques Prévert, Raymond Queneau, Georges Ribemont–Dessaignes, Roger Vitrac, Michel Leiris, Georges Limbour, J. –A. Boiffard, Robert Desnos, Max Morise, Georges Bataille, Jacques Baron, Alejo Carpentier. No entanto, Pierre Naville, que havia saído em 1928 do movimento, deixando para Breton a direção da revista Révolution Surréaliste , embora convidado, julgou inoportuno aliar-se aos opositores. De acordo com Maurice Nadeau, os participantes do “cadavre” de 1930 pertencem a diversas correntes:
um ex-dadaísta, Ribemont-Dessaignes; um ex-surrealista, Vitrac, expulso há muito tempo, Limbour, afastado dos escândalos e da agitação surrealista, graças a seu temperamento, Morise, ex-fiel seguidor e executor de Breton, Jacques Baron, Michel Leiris, Raymond Queneau, J.–A. Boiffard, Robert Desnos, Jacques Prévert, e um homem que jamais pertencera ao grupo mas que fora particularmente maltratado por Breton, Georges Bataille . (Nadeau, 197, p. 125)
De certa maneira, os signatários de “Un cadavre” não atacam o movimento surrealista; elegem como alvo exclusivo Breton, já denominado de “papa do surrealismo”. Flic (tira, policial) e curé (cura, pároco) são os adjetivos mais freqüentes, os quais visam a relacionar Breton com instituições que ele próprio declarara combater em seus Manifestos. Ainda, acusam-no “d'hypocrisie, d'esprit dictatorial et religieux, de radicalisme de salon, etc” (In Queneau, 2002, p. 66) e de traidor de seus amigos e de seus ideais. A seguir, citamos alguns desses ataques:
“Cura: “O irmão Breton que prepara o padre ao molho de mostarda só fala de cátedra” (Ribemont-Dessaignes); “Tive um amigo sincero” (supostamente é Breton quem fala), Robert Desnos. “Eu o enganei, menti-lhe, dei-lhe falsamente minha palavra de honra” (Robert Desnos): “Ele trapaceou, em larga escala, com a amizade”(Vitrac). […] (In Nadeau, 1985, p. 125).
No texto DÉDÉ, de Raymond Queneau, repetem-se 4 (quatro) vezes o verso “Le doigt dans le trou du cul” (o dedo no buraco do cu), finalizando com uma espécie de moralidade a fim de lembrar a moralidade de Breton, e que, onde há regras, constrangimentos, não há humor (o “umor” que Breton dizia ter herdado de Jacques Vaché):
MORALITÉ
Non ! Non ! la poésie n'est pas morte !
Les chants désespérés sont toujours les plus
Beaux et ousqu'y a de la gêne y a pas d'humour
Pour les petits oiseaux . (In Queneau, 2002, p. 67)
Em “Mort d'un Monsieur”, de Jacques Prévert, num estilo e no humor que caracterizarão seus poemas, Prévert começa lamentando o desaparecimento daquele que o fazia rir: “Hélas, je ne reverrai plus l'illustre Palotin du Monde Occidental, celui qui me faisait rire!. (Prévert, 1996, p. 444). Depois, Prévert ataca os relatos de sonhos de Breton, dizendo que um dia num sonho, após se olhar seriamente (ou seja, sem humor) no espelho, ele se achou belo. Para Prévert, foi o fim de Breton, que passou a confundir “le désespoir et le mal de foie, la Bible et les Chants de Maldoror, Dieu et Dieu, l'encre et le foutre, [. . .] la Révolution Russe et la Révolution Surréaliste. (Encore....et toujours la plus scandaleuse du monde) (Prévert, 1996, p. 443).
Afirma Prévert que, às vezes, Breton colocava sua toga de juiz e praticava a Moral e a Crítica de Arte, sem, no entanto, conseguir esconder as cicatrizes que o bigodudo das finanças (Dali) havia lhe deixado: “il mettait parfois sa toque de juge par-dessus son képi, et faisait de la Morale ou de la critique d'art, mais il cachait difficilement les cicatrices que lui avait laissées le croc à phynances de la peinture moderne.” (Prévert, 1996, p. 444)
Por fim, Prévert se lamenta novamente pela morte do controlador do Palácio das Miragens, o furador de bilhetes, o grande Inquisitor, o Deroulède do Sonho: “Hélas, le contrôleur du Palais des Mirages, le perceur de tickets, le gros Inquisiteur, le Déroulède du Rêve n'est plus”, pedindo que não se fale dele: “n'en parlons plus”. (Prévert, 1996, p. 444)
Como contra-ataque aos signatários de “Un cadavre”, Louis Aragon diz que a entrada de novos elementos (René Char, Salvador Dali, Luis Buñuel) no Surrealismo compensou muito bem a saída de “tant de velléitaires confus et de littérateurs décidés.” (Ségalat, 1968, p. 124)
No Paris-Midi , Pierre Lazareff, ao evocar o escândalo entre os surrealistas e os signatários de “Un cadavre”, chega a pressupor que o surrealismo, como escola filosófica e literária, teria acabado:
Déjà les bibliofiles s'arrachent Un cadavre... C'est la fin d'une école littéraire et philosophique qui, quoi qu'on en ait dit, a eu un retentissement profond dans la jeunesse intellectuelle. Depuis plus de deux mois, on savait que le nouveau groupement, connu sous le nom d'école des Deux-Magots, préparait une offensive contre André Breton . (In Queneau, 1997, p. 66)
No entanto, não se formou nenhuma escola dissidente. O conflito não marca o fim do Surrealismo, mas assinala o início de um outro período. Da parte de Breton e seus colegas, cite-se a mudança do título do órgão oficial do movimento, a revista Révolution Surréaliste , para Le Surréalisme au service de la Révolution , a qual dura de 1930 a 1933, mantendo-se independente de qualquer intervenção do Partido Comunista Francês. Segundo Sarane Alexandrian, esta nova revista “não tocou no problema da acção social, a não ser nas suas relações com a expressão ideal das paixões” (Alexandrian, 1973, p. 99).
Da parte dos dissidentes, diga-se que todos eles resolveram “faire route à part”, mas sem nunca abandonar ideais essencialmente surrealistas, como o Amor, a Ooesia, a Revolução, o Humor, a Experimentação e o Sonho. Ou seja, deixaram, por questões pessoais, a instituição “movimento surrealista”, mas não o Surrealismo.
Personagens desse conflito, como André Breton e Jacques Prévert, os quais se reconciliaram em 1937, consideraram, anos depois, que o momento que viviam justificava os ataques recíprocos. Quando perguntado por Madeleine Chapsal sobre a republicação dos manifestos em 1962 sem qualquer revisão, Breton responde:
Concordo que muitos desses ataques são de uma virulência deplorável e, aliás, largamente ultrapassados. Fiz justiça no prefácio à reedição do Segundo Manifesto, em 1946, que é retomado na reedição atual. Não me foram poupados ataques da mesma ordem. Contam-se entre os exageros que já não me cabe apagar. Aqueles que foram alvo deles sabem que resultam do clima passional em que se desenvolveu o surrealismo. (Chapsal, 1986, p. 189-190)
Por sua vez, Jacques Prévert afirma em seu livro–entrevista Hebdromadaires (1972) que, embora tenha dito coisas desagradáveis a Breton, acha que elas foram necessárias naquele momento:
Moi, une fois, j'ai dit ou plutôt j'ai écrit des choses très désagréables pour lui. Ces choses, je les trouvais vraies. Je les disais en riant, peut-être, d'un rire qui n'était sans doute pas marrant pour lui à ce moment-là. Mais en y repensant, je n'en enlève rien. Par la suite, on s'est revus, on a beaucoup ri. Malgré tout, nous étions et nous sommes encore, aujourd'hui qu'il est mort comme on dit, des amis. (Prévert, 1996, p. 915)
No último poema de Paroles (1946), “Lanterne magique de Picasso”, Prévert demonstra que, embora tenha desaprovado as críticas de Breton no Segundo Manifesto , sua obra também procura a surrealidade num mundo que seria, como escreveu Lautréamont, belo como tudo:
Les idées pétrifiées devant la merveilleuse indifférence
d'un monde passioné
d'un monde retrouvé
d'un monde indiscutable et inexpliqué
d'un monde sans savoir-vivre mais plein de joie de vivre
d'un monde sobre et ivre
d'un monde triste et gai
tendre et cruel
réel et surréel
terrifiant et marrant
nocturne et diurne
solite et insolite
beau comme tout . (Prévert, 1992, I, p. 157)
Assim, a busca pela surrealidade, apesar dos conflitos que ela possa causar, continua a ser o ponto de contato entre aqueles que querem, através da união entre o Amor, da Poesia, do Sonho, do Humor e da Revolução, transformar o mundo e mudar a vida. Termino citando Prévert: “Graças aos surrealistas, esta vida real, como os sonhos deles, continuam”.

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2- AS HORAS
3- O PODEROSO CHEFAO de FRANCIS FORD COPOLLA
4- LAWRENCE DA ARABIA de DAVID LEAN
5- CIDADAO KANE de ORSON WELLES
6- AMACORD de FELLINI
7- A LISTA DE SHINDLER de STIVEN SPIELBERG
8- HANNA E SUAS IRMAES de WOODY ALLEN
9- TEMPOS MODERNOS de CHARLIM CHAPLIN
10- INLAND EMPIRE de DAVID LINCH
11- APOCALIPSE NOW de COPOLLA
12- O PODEROSO CHEFAO II de FRANSCIS FORD COPOLLA
13- DOUTOR JIVAGO de DAVID LEAN
14- JE VUS SALE MARIE de JEAN LUC GODAD
15- ROCCO E SEUS IRMAOS de LUCIANO VISCONTHI
16- RASHOMON de AKIRA KUROWAUA
17- CANTANDO NA CHUVA de GENE KELLY
18- AMADEUS DE milos FORMAM
19- MAMLCOM X de SPIKE LEE
20- 21 GRAMAS DE ALERRANDRO
21- OS BONS COMPANHEIROS de MARTINS SCORSESE
22- CASA BLANCA de MICHEL CUTIZ
23- LADRAO DE BICICLETA DE VOTORIA DE SICA
24- RAN de AKIRA KUROWAUA
25- BEM HUR de WILLEY WILLER
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27- SPARTACUS de STANLEY KUBRIK
28- E O VENTO LEVOU de VICTO FLEMING
29- QUANTO MAIS QUENTE MELHOR de BILLY WILDER
30- UM BONDE CHAMADO DESEJO de ELIA KAZAN
31- MEU ESQUEDO de JIM HERIDAN
32- O PROCESSO DE ORSON WELLES
33- FOREST GUMP de ROBERT ZEMECKS
34- CONDUZINDO MISS DEISY de
35- UM SONHO DE LIBERDADE DE FAKN DARANBONT
36- HAMLET DE LAWRENCE OLIVIER
37- LUZES DA CIDADE de CHARLIM CHAPLIM
38- CIDADE DE DEUS de FERNADO MEIRELLES
39- DEZU UZALA de AKIRA KUROWAUA
40- J.F.K de OLIVER STONE
41- TRONO MANCHADO DE SANGUE de AKIRA KUROWAUA
42- TOURO INDOMAVEL de MARTINS SCORSESE
43- NOIVO NEUROTICO NOIVA NERVOSA de WOODY ALLEM
44- BLUDE RUNNER de RIDLEY SCOTT
45- O FANTASMA DA LIBERDADE de LUIS BUNUEL
46- O GAROTO de CHAPLIM
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48- MORTE EM VENEZA DE VISCONTHI
49- OS INTOCAVEIS de BRIAN DE PALMA
50- REN MAN DE BARRY LERVISON
51- DESPEDIDA EM LAS VEGAS
52- CLOSERS
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55- O PODEROSO CHEFAO III
56- LARANJA MECANICA DE STANLEY KUBRIK
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58- ACOSSADO DE JEAN LUC GODAD
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63- O DISCRETO CHARME DA BURGUESIA DE LOUIS BUNUEL
64- A ULTIMA TENTAÇAO DE CRISTO de MARTIN SCORSESE
65- OPERAÇAO FRANÇA
66- A DAMA DE SHANGAI DE ORSON WELLES
67- GATA EM TETO DE ZINCO QUENTE
68- NEW YORQUE,NEM YORQUE DE MARTIN SCORSESE
69- MORANGO SISVESTRE DE IGMAM BERGMAM
70- O REVERSO DA FORTUNA
71- O SILENCIO DOS INOCENTES de JONATHAM DAME
72- BARRY LINDON de STANLEY KUBRIK
73- O PACIENTE INGLES de ANTHONI MIGUELLA
74- IMPERIO DO SOL de STIVEN SPIELBERG
75- SHANIATWAIN
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80- OS IMPERDOAVEIS de CLINT WAESTOWOOD
81- O RESGATE DO SOLDADO RYAN de STIVEN SPELBRG
82- OS SETE SAMURAIS de AKIRA KUROWAUA
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86- RETORNO A RWASHEND de JAMES IVORY
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88- E LA NAVE VÁ de FEDERICO FELLINI
89- TODOS DIZEM, EU TE AMO de WOODY ALLEM
90- A CONVERSAÇAO de FRANCIS COPOLLA
91- 2001 UMA ODISSEIA NO ESPAÇO de STALLEY KUBRYK
92- CIDADE DOS SONHOS de DAVID LINCH
93- O ULTIMO TANGO EM PARIS de BARNARDO BERTOLUCCI
94- TWIN PEANKS de DAVID LINCH
95- CASSINO de MARTIN SCORSESE
96- CELEBRIDADES de WOODY ALLEM
97- BILLY ELIOT de STHEPEN DALDRY
98- SONHOS de AKIRA KUROWAUA
99- PROCURANDO AMY
100-O ULTIMO IMPERADOR DE BERNARDO BERTOLUCCI

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Afinal

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08:56

Fernando Pessoa é para mim simplesmente o maior poeta de todos os tempos.

Afinal, a melhor maneira de viajar é sentir.
Sentir tudo de todas as maneiras.
Sentir tudo excessivamente,
Porque todas as coisas são, em verdade, excessivas
E toda a realidade é um excesso, uma violência,
Uma alucinação extraordinariamente nítida
Que vivemos todos em comum com a fúria das almas,
O centro para onde tendem as estranhas forças centrífugas
Que são as psiques humanas no seu acordo de sentidos.

Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidade eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.
Mais análogo serei a Deus, seja ele quem for,
Porque, seja ele quem for, com certeza que é Tudo,
E fora d'Ele há só Ele, e Tudo para Ele é pouco.

Cada alma é uma escada para Deus,
Cada alma é um corredor-Universo para Deus,
Cada alma é um rio correndo por margens de Externo
Para Deus e em Deus com um sussurro soturno.

Sursum corda! Erguei as almas! Toda a Matéria é Espírito,

Porque Matéria e Espírito são apenas nomes confusos
Dados à grande sombra que ensopa o Exterior em sonho
E funde em Noite e Mistério o Universo Excessivo!
Sursum corda! Na noite acordo, o silêncio é grande,
As coisas, de braços cruzados sobre o peito, reparam

Com uma tristeza nobre para os meus olhos abertos
Que as vê como vagos vultos noturnos na noite negra.
Sursum corda! Acordo na noite e sinto-me diverso.
Todo o Mundo com a sua forma visível do costume
Jaz no fundo dum poço e faz um ruído confuso,

Escuto-o, e no meu coração um grande pasmo soluça.

Sursum corda! ó Terra, jardim suspenso, berço
Que embala a Alma dispersa da humanidade sucessiva!
Mãe verde e florida todos os anos recente,
Todos os anos vernal, estival, outonal, hiemal,
Todos os anos celebrando às mancheias as festas de Adônis
Num rito anterior a todas as significações,
Num grande culto em tumulto pelas montanhas e os vales!
Grande coração pulsando no peito nu dos vulcões,
Grande voz acordando em cataratas e mares,
Grande bacante ébria do Movimento e da Mudança,
Em cio de vegetação e florescência rompendo
Teu próprio corpo de terra e rochas, teu corpo submisso
A tua própria vontade transtornadora e eterna!
Mãe carinhosa e unânime dos ventos, dos mares, dos prados,
Vertiginosa mãe dos vendavais e ciclones,
Mãe caprichosa que faz vegetar e secar,
Que perturba as próprias estações e confunde
Num beijo imaterial os sóis e as chuvas e os ventos!

Sursum corda! Reparo para ti e todo eu sou um hino!
Tudo em mim como um satélite da tua dinâmica intima
Volteia serpenteando, ficando como um anel
Nevoento, de sensações reminescidas e vagas,
Em torno ao teu vulto interno, túrgido e fervoroso.
Ocupa de toda a tua força e de todo o teu poder quente
Meu coração a ti aberto!
Como uma espada traspassando meu ser erguido e extático,
Intersecciona com meu sangue, com a minha pele e os meus nervos,
Teu movimento contínuo, contíguo a ti própria sempre,

Sou um monte confuso de forças cheias de infinito
Tendendo em todas as direções para todos os lados do espaço,
A Vida, essa coisa enorme, é que prende tudo e tudo une
E faz com que todas as forças que raivam dentro de mim
Não passem de mim, nem quebrem meu ser, não partam meu corpo,
Não me arremessem, como uma bomba de Espírito que estoira
Em sangue e carne e alma espiritualizados para entre as estrelas,
Para além dos sóis de outros sistemas e dos astros remotos.

Tudo o que há dentro de mim tende a voltar a ser tudo.
Tudo o que há dentro de mim tende a despejar-me no chão,
No vasto chão supremo que não está em cima nem embaixo
Mas sob as estrelas e os sóis, sob as almas e os corpos
Por uma oblíqua posse dos nossos sentidos intelectuais.

Sou uma chama ascendendo, mas ascendo para baixo e para cima,
Ascendo para todos os lados ao mesmo tempo, sou um globo
De chamas explosivas buscando Deus e queimando
A crosta dos meus sentidos, o muro da minha lógica,
A minha inteligência limitadora e gelada.

Sou uma grande máquina movida por grandes correias
De que só vejo a parte que pega nos meus tambores,
O resto vai para além dos astros, passa para além dos sóis,
E nunca parece chegar ao tambor donde parte ...

Meu corpo é um centro dum volante estupendo e infinito
Em marcha sempre vertiginosamente em torno de si,
Cruzando-se em todas as direções com outros volantes,
Que se entrepenetram e misturam, porque isto não é no espaço
Mas não sei onde espacial de uma outra maneira-Deus.

Dentro de mim estão presos e atados ao chão
Todos os movimentos que compõem o universo,
A fúria minuciosa e dos átomos,
A fúria de todas as chamas, a raiva de todos os ventos,
A espuma furiosa de todos os rios, que se precipitam,

A chuva com pedras atiradas de catapultas
De enormes exércitos de anões escondidos no céu.

Sou um formidável dinamismo obrigado ao equilíbrio
De estar dentro do meu corpo, de não transbordar da minh'alma.
Ruge, estoira, vence, quebra, estrondeia, sacode,
Freme, treme, espuma, venta, viola, explode,
Perde-te, transcende-te, circunda-te, vive-te, rompe e foge,
Sê com todo o meu corpo todo o universo e a vida,
Arde com todo o meu ser todos os lumes e luzes,
Risca com toda a minha alma todos os relâmpagos e fogos,
Sobrevive-me em minha vida em todas as direções!



By ALVARO DE CAMPOS

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Morte à orelha de Van Gogh!

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08:32

O Autor de um dos poemas mais importantes do século XX, o UIVO, Allen Ginsberg foi e é um dos maiores simbolos da poesia universal, bandeira fundamental da revolução cultural-poetico americana, o movimento beat e um dos Sercerdotes da arte em todos os tempos.



O Poeta é Sacerdote
O dinheiro contabilizou a alma da América
O Congresso desabou no precipício da Eternidade
O Presidente construiu uma máquina de guerra que vomitará e varrerá a Rússia para fora do Kansas
O Século Americano foi traído por um Senado louco que não dorme mais com sua mulher
Franco assassinou Lorca o filho queridinho de Whitman
assim como Maiakovski se suicidou para evitar a Rússia
Hart Crane Platônico insigne se suicidou para soterrar a América errada
assim como milhões de toneladas de cereal humano foram queimadas em porões secretos sob a Casa Branca
enquanto a Índia morria de fome e gritava e comia cachorros loucos encharcados de chuva
e montões de ovos eram reduzidos a pó branco nos corredores do Congresso
nenhum homem temente a Deus andará de novo por lá por causa do fedor dos ovos podres da América
e os índios de Chiapas continuam a mastigar suas tortillas sem vitaminas
aborígenes da Austrália talvez resmunguem na selva sem ovos
e raramente eu tenho um ovo para o café da Manhã embora meu trabalho precise de infinitos ovos para renascer na Eternidade
ovos deviam ser comidos ou então devolvidos a suas mães
e o desespero das incontáveis galinhas da América se expressa pela gritaria dos seus comediantes no rádio
Detroit fabricou um milhão de automóveis de seringueiras e fantasmas
mas eu caminho, eu caminho e o Oriente caminha comigo e toda a África caminha
e mais cedo ou mais tarde a América do Norte também caminhará
pois assim como expulsamos o Anjo Chinês da nossa porta, ele também nos expulsará da Porta Dourada do futuro
nós não mostramos piedade para Tanganica
Einstein em vida recebeu zombarias por sua política celestial
Bertrand Russel expulso de Nova York por trepar
e o imortal Chaplin foi expulso das nossas praias com a rosa entre os dentes
uma conspiração secreta da Igreja Católica nos mictórios do Congresso negou anticoncepcionais às incessantes massas da Índia
Ninguém publica uma palavra que não seja o delírio covarde de um robô com mentalidade depravada
o dia da publicação da verdadeira literatura do corpo americano será o dia da Revolução
a revolução do cordeiro sexual
a única revolução incruenta que distribuirá cereais
o pobre Genet iluminará os que trabalham nas colheitas de Ohio
Maconha é um narcótico benigno mas J. Edgar Hoover prefere seu mortífero scotch
E a heroína de Lao-Tsé & do Sexto Patriarca é punida com a cadeira elétrica
porém os pobres drogados não têm onde pousar suas cabeças
canalhas em nosso governo inventaram um tratamento torturante para o vício tão obsoleto quanto o Sistema de Defesa de Alarme pelo Radar
eu sou o sistema de defesa de alarme pelo radar
Não vejo nada a não ser bombas
não estou interessado em impedir que a Ásia seja Ásia
e os governos da Rússia e da Ásia se erguerão e cairão mas a Ásia e a Rússia não cairão
o governo da América também cairá mas como pode a América cair
duvido que mais alguém venha a cair alguma vez a não ser os governos
felizmente todos os governos cairão
os únicos que não cairão serão os bons
e os bons governos ainda não existem
Mas eles precisam começar a existir eles existem nos meus poemas
eles existem na morte dos governos da Rússia e da América
eles existem nas mortes de Hart Crane e de Maiakovski
Esta é a hora da profecia sem morte como conseqüência
o universo acabará por desaparecer
Hollywood apodrecerá nos moinhos de vento da Eternidade
Hollywood cujos filmes estão atravessados na garganta de Deus
Sim Hollywood receberá o que merece
Tempo
Infiltração ou gás paralisante pelo rádio
A História tomará profético este poema e sua horrível estupidez será uma hedionda música espiritual
Eu tenho o arrulhar das pombas e a pluma do êxtase
O Homem não pode agüentar mais a fome da abstração canibal
A guerra é abstrata
o mundo será destruído
mas eu só morrerei pela poesia que salvará o mundo
Monumento a Sacco e Vanzetti ainda não patrocinado para dignificar Boston
nativos do Quênia atormentados pelos imbecis criminosos da Inglaterra
a África do Sul nas garras do branco alucinado
Vachel Lindsay Ministro do Interior
Poe Ministro da Imaginação
Pound Ministro da Fazenda
e Kra pertence a Kra e Pucti a Pucti
cruzamento de Blok e Artaud
a Orelha de Van Gogh estampada no dinheiro
chega de propaganda de monstros
e os poetas devem ficar fora da política ou se tornarão monstros
eu me tornei monstruoso por causa da política
o poeta russo indiscutivelmente monstruoso em seu diário íntimo
o Tibete deve ser deixado em paz
Estas são profecias óbvias
A América será destruída
os poetas russos lutarão contra a Rússia
Whitman preveniu contra essa "maldita fábula das nações"
Onde estava Theodore Roosevelt quando ele mandou ultimatos do seu castelo em Camden
Onde estava a Câmara dos Deputados quando Crane leu em voz alta seus livros proféticos
Onde estava tramando Wall Street quando Lindsay anunciou o destino final do Dinheiro
Estariam escutando meus delírios nos vestiários do Departamento de Pessoal de Bickford’s?
Deram ouvidos aos gemidos da minha alma enquanto eu lutava
com estatísticas de pesquisas de mercado no Fórum de Roma?
Não eles estavam brigando em reluzentes escritórios, sobre carpetes de parada cardíaca, berrando e negociando com
o Destino
brigando com o Esqueleto com sabres, mosquetões, dentes arreganhados, indigestão, bombas de roubo, prostituição, foguetes, pederastia,
de costas para a parede por causa das suas mulheres, apartamentos, gramados, subúrbios, contos de fada,
Porto-riquenhos amontoados para o massacre por causa de uma geladeira de imitação chinesa-moderna
Elefantes da misericórdia trucidados por causa de uma gaiola elizabetana de pássaros
milhões de fanáticos agitados no hospício por causa do estridente soprano da indústria
O canto de dinheiro das saboneteiras - macacos de pasta de dente nos televisores - desodorantes em cadeiras hipnóticas -
atravessadores de petróleo no Texas - aviões a jato riscando as nuvens -
escritores do céu mentirosos diante da Divindade - açougueiros de afiados dentes com chapéus e sapatos, todos Proprietários! Proprietários! Proprietários! com obsessão de propriedade e Ego evanescente!
e seus longos editoriais tratando friamente do caso do negro que berra atacado por formigas pulando para fora da primeira página!
Maquinaria de um sonho elétrico das massas! A Prostituta da Babilônia criadora de guerras vociferando com Capitólios e Academias!
Dinheiro! Dinheiro! Dinheiro! dinheiro celestial da ilusão berrando loucamente! Dinheiro feito de nada, fome, suicídio! Dinheiro do fracasso! Dinheiro da morte!
Dinheiro contra a Eternidade! e os fortes moinhos da eternidade trituram o imenso papel da ilusão!


By Allen Ginsberg

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Roberto Piva

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14:41

um dos mestres da poesia marginal brasileira, o paulistano Roberto Piva foi uma das bandeiras beats na decada de 60 e hoje é um dos grandes pensadores da poesia urbana-existencial dos tempos atuais.

essa poema foi tirado da sua grande obra prima "Paranóia" de 1963.

Visão de São Paulo à noite
Poema Antropófago sob Narcótico

Na esquina da rua São Luís uma procissão de mil pessoas
acende velas no meu crânio
há místicos falando bobagens ao coração das viúvas
e um silêncio de estrela partindo em vagão de luxo
fogo azul de gim e tapete colorindo a noite, amantes
chupando-se como raízes
Maldoror em taças de maré alta
na rua São Luís o meu coração mastiga um trecho da minha vida
a cidade com chaminés crescendo, anjos engraxates com sua gíria
feroz na plena alegria das praças, meninas esfarrapadas
definitivamente fantásticas
há uma floresta de cobras verdes nos olhos do meu amigo
a lua não se apóia em nada
eu não me apóio em nada
sou ponte de granito sobre rodas de garagens subalternas
teorias simples fervem minha mente enlouquecida
há bancos verdes aplicados no corpo das praças
há um sino que não toca
há anjos de Rilke dando o cú nos mictórios
reino-vertigem glorificado
espectros vibrando espasmos
beijos ecoando numa abóbada de reflexos
torneiras tossindo, locomotivas uivando, adolescentes roucos
enlouquecidos na primeira infância
os malandros jogam ioiô na porta do Abismo
eu vejo Brama sentado em flor de lótus
Cristo roubando a caixa dos milagres
Chet Baker ganindo na vitrola
eu sinto o choque de todos os fios saindo pelas portas
partidas do meu cérebro
eu vejo putos putas patacos torres chumbo chapas chopes
vitrinas homens mulheres pederastas e crianças cruzam-se e
abrem-se em mim como lua gás rua árvores lua medrosos repuxos
colisão na ponte cego dormindo na vitrina do horror
disparo-me como uma tômbola
a cabeça afundando-me na garganta
chove sobre mim a minha vida inteira, sufoco ardo flutuo-me
nas tripas, meu amor, eu carrego teu grito como um tesouro afundado
quisera derramar sobre ti todo meu epiciclo de centopéias libertas
ânsia fúria de janelas olhos bocas abertas, torvelins de vergonha,
correias de maconha em piqueniques flutuantes
vespas passeando em voltas das minhas ânsias
meninos abandonados nus nas esquinas
angélicos vagabundos gritando entre as lojas e os templos
entre a solidão e o sangue, entre as colisões, o parto
e o Estrondo

Paranóia (1963)

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