CAN - Tago-Mago (1971)

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Esse disco é uma experiência psiquica iniqualável.

É provável que seja o álbum mais amado dos CAN
aquele que desenvolveu maior e irresistível aura mítica em seu redor.
Um catálogo de experiências sónicas, que teria feito Stockhausen e Berio
desmaiar de inveja nos seus estúdios,
enquanto buscavam o definitivo som hipnótico.
Capa propositadamente ingénua em “primitive-painting”,
título anunciando a palavra mágica de uma primordial linguagem,
que se poderá repetir até à exaustão.
Depois das espasmódicas e perturbantes gravações com Malcolm Mooney
em “Monster Movie” (há ainda “Delay 1968”, editado postumamente) de 1969
e em metade de “Soundtracks” (há temas recuperados em “Unlimited Edition”,
mais tarde, vocalizados por Malcolm),
os CAN encetaram uma empolgante trilogia com Damo Suzuki,
esticando como ninguém o conceito de fusão experimental.
Donos de uma genialidade subversiva,
foram uma voz essencial de um movimento musical
sediado no coração da Europa industrial, denominado “Krautrock”
(possivelmente num “brainstorming” de um crítico americano),
epíteto nada abonatório para diferençar a excêntrica música alemã,
fora do puzzle e sem bases claras no rhythm & blues.
Cá para nós faz mais sentido o termo “rock alemão”.
Estabelecer coordenadas
para um disco tão arrevesado como este não é tarefa fácil.
Os CAN tal como os Faust, subiram a cordilheira a pique,
e há uma foto admirável no livrete
em que os cinco músicos escalam uma montanha,
metáfora fascinante para caracterizar
a herança que legaram à música popular.
Os CAN sempre estiveram cinco milhas acima,
e estudando “Tago-Mago”
podemos pensar nos universos de H.P. Lovecraft
e Philip K. Dick, em utopias de ficção científica,
nos Novos Expressionistas ou no Realismo Fantástico,
nas heranças étnicas e no poder macrobiótico,
para nomear aleatoriamente.
“Tago-Mago” abre com o psicadelismo, “Paperhouse”
e “Mushroom” são duas faces da mesma alteração caleidoscópica;
“Paperhouse” é enérgico e nervoso, repleto de ritmos trepidantes;
“Mushroom” é uma dança narcótica arrastada pelo coração aos pulos.
Ambos os temas revelam finalmente a maturidade do grupo
e uma inequívoca união criativa,
Holger Czukay referindo-se ao grupo
viu-o como um “enorme e vibrante organismo”.
Todo o psicadelismo posterior viria absorver aqui,
envergonhado com o estigma do rock progressivo,
uma linguagem sóbria distante da paleta de cores “hippie”,
veja-se o caso dos Sonic Youth, My Blood Valentine
ou obviamente todos os grupos de Manchester e Liverpool.
Aliás “Mushroom” é porventura o duradouro ícone da canção psicadélica,
se Syd Barrett nos autorizar pois não vamos esquecer
“Astronomy Domine” e “Lucifer Sam”.
A carga apocalíptica, a guitarra atingindo subliminarmente o cérebro
em cicatrizes dolorosas, a bateria inconfundível de Jaki Liebezeit
(portento de baterista ao lado de Bill Bruford
e Dave Kerman, este nos dias de hoje!)
insistindo num ritmo selvagem (tem passos de elefante),
escutado secretamente em algum ritual ancestral.
“Oh Yeah” começa no campo da explosão nuclear de “Mushroom”,
uma cavalgada feérica programada pelos teclados de Schmidt,
a voz de Suzuki a ditar textos ao contrário,
um breve momento de paisagismo vespertino,
logo incendiado por rifes de guitarra em chamase percussão ensimesmada.
“Halleluhwah” é um mantra “rockligioso” afinado pelo “wah-wah” das guitarras
e um baixo mais sóbrio, os teclados esfumando-se em resquícios estelares,
a bateria presa a um ponto qualquer do espaço,
movimentando-se em padrões circulares.
Ainda há tempo para Karoli improvisar em límpida guitarra acústica
e num violino tocado pela luz do Ganges.
Na parte final, o baixo vai na dianteira banhando-se
em aquáticas ondulações dos teclados,
tudo inesperadamente sugado
por um buraco negro em desvario concêntrico,
os instrumentos peneirados no cosmos e Suzuki acordando da câmara de sono,
exaltado com novas vistas além.
“Aumgn” e “Peking O” são de outra nascença,
toda a sequência do primeiro é inimitável na música popular
e abala-nos profundamente, mas no segundo
já é fácil soltarmos um sorriso nervoso face a toda aquela neurose extravagante.
“Aumgn”, distorção animalesca do som sagrado Aum (ou Om),
nunca apareceria num disco dos Moody Blues, vá não vamos brincar,
mete tanto medo como “Nature Unveiled” dos Current 93
ou “Saint Of the Pit” de Diamanda Gàlas.
Há vibrações, ruídos e lamentações,
contrabaixos sufocados para surtirem o efeito cavernoso,
a devoção vinda do susto, instrumentos atirados ao chão;
há pânico, gritos, berros e urros,
é impressão minha ou Suzuki chega a ladrar,
transfigurado em lobisomem no estúdio?
A visita correu mal, somos apanhados no meio de mil tambores
que criam uma sequência impressionante,
os teclados indicam erro, a percussão insistente redobra a cadência,
urros abafados e num abrir e fechar de olhos estamos a salvo,
toca a conquistar outro planeta, teremos sorte desta vez?
Não, a julgar pelo discurso de camisa-de-força
do ditador na tribuna de “Peking O”.
Ainda há um interregno lounge,
onde as caixas de ritmo adoçam a disfunção,
mas Suzuki é irredutível na sua demente personagem,
as caixas de ritmo não têm antídoto e saltitam,
Suzuki disparata com garatujas vocais,
impropérios em línguas desconhecidas,
onomatopeias atormentadas, a um passo do precipício nesta insanidade.
E o grupo com culpa no cartório, atirando-se para cima dos instrumentos:
exorcismo ou catarse?Para serenar os sentidos,
Czukay e comparsas trazem uma certa bonança em “Bring Me Coffee or Tea”,
um órgão delicioso traz bom vento
e os CAN estão de férias no País das Maravilhas,
em ácida sugestão de bebidas modificadas (Ei, Gong!)
e o álbum desloca-se em serenidade aparentemente controlada,
mas a encerrar um certo entusiasmo na despedida
deixa adivinhar que puseram qualquer coisa no chá…
“Tago-Mago” é um padrão de descobrimentos,
competindo com o marco de estrada dos Kraftwerk.

Entulho Cósmico

Toda a palavra é um verso e todo o verso é um infinito

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