Andrei Tarkovski - O rolo compressor e o violinista

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Andrei Tarkovski, Katoki i skripka, URSS, 1959

Primeiros Planos, Estética e Política, Política Estética

A análise de filmes do passado exige uma reconfiguração do olhar. Nossa percepção não tem como ser a mesma dos espectadores situados nos momentos nos quais as obras foram lançadas, embora percepções das mesmas evidências, em um mesmo momento e em uma mesma sociedade, também não sejam uniformes e dependam do repertório agenciado por cada espectador.

Já quando o espectador está, em relação à obra, décadas à frente e, em relação à origem da mesma, milhares de quilômetros distante, tem duas opções, não necessariamente excludentes, para penetrar na narrativa. Uma é assimilar as imagens a partir de informações colhidas fora delas, mediado pelo distanciamento em relação ao período histórico, assim como pela localização da obra no percurso dos autores e do cinema. Leva-se para o filme, assim, o manual de decodificação. Não há como se desvincular desse processo em textos analíticos. Uma outra opção, a princípio mais fácil, mas na verdade mais complexa, é ignorar os contextos, atendo-se apenas às evidências na tela. Não nos importa, nessa experiência, quem assina o filme.

Tampouco o futuro de sua filmografia, já tornado passado para o crítico. Busca-se na obra, portanto, sua permanência. E também sua capacidade de transpor barreiras culturais para se afirmar em outro ambiente, não sem inevitáveis ruídos e limites de comunicação. Tentaremos aqui uma aproximação dupla e complementar em relação a O Rolo Compressor e O Vilonista, de Andrei Tarkovski, um média metragem de conclusão de curso universitário pouco conhecido até por seus admiradores mais empenhados.


Primeiro, as evidências. Um menino fecha uma porta, desce as escadas carregando um violino, tenta esquivar-se de vizinhos, mais ou menos da mesma idade, que o atazanam e o desprezam, justamente por ele ser músico, circunstância que o torna diferente, distante de moleques rudes e agressivos. O músico mirim esconde-se, nesse início, no saguão de seu prédio. Tem medo de ser mal tratado. Nessa primeira aproximação, temos pistas temáticas: o embate entre arte e força, com conseqüente isolamento do artista, que vive em exílio social, asfixiado pela brutalidade. Vemos ainda nestes primeiros segundos, após meia dúzia de planos, algumas características que, no desenrolar das imagens, irão se tornar um padrão.

Há uma preocupação em situar os atores em espaços físicos bem definidos, um rigor na distribuição simétrica dos corpos e objetos nesse espaço, a quase obsessão em compor a cena com raios solares e sombras, enquadramentos construídos em posições pensadas para aumentar ou diminuir o tamanho dos personagens na tela (câmera baixa, câmera no alto) e uma busca de uma harmonia visual pictórica, mesmo quando a câmera está em movimento. Mais alguns segundos e vemos outro recurso, até desnecessário às vezes, que retornará em um trecho ou outro: o uso da grua, que ora vem de cima e se aproxima dos atores, ora sai do chão e, subindo, distancia-se dos corpos. A profundidade de campo também será acionada aqui e ali, motivando cenas aparentemente concebidas apenas para sua utilização.

Tem-se assim, dos primeiros aos últimos minutos, um culto à imagem, com a decorrente manipulação de sua superfície. Dois momentos revelam essa disposição em distorcer os signos para se afastar de significações imediatas e sugerir outras no lugar. Primeiro quando o menino pára diante de uma vitrine e olha imagens duplicadas nos espelhos à sua frente. Ele sorri, tem prazer com a percepção diferente do mundo. Poucos segundos adiante, em uma prova de música, durante a qual a professora cobra do garoto o andamento correto, mais veloz, vemos uma imagem desfocada, que sugere um pêndulo, um marcador do ritmo musical. É um copo de água, com esta em movimento.


Nas relações entre os seres, assim como nas ações deles, surgem significações políticas. Essas derivam da aproximação entre os dois personagens centrais, o menino músico e um operário, que ao longo da narrativa iniciam uma amizade. O menino aprenderá com o operário a tomar partido nas situações injustas e a reagir dentro das possibilidades quando tentam oprimi-lo. O operário aprenderá com o menino uma ou outra coisa sobre música. A relação seria selada em uma sessão de cinema, do filme Chapayev, dos irmãos Vassiliev, título símbolo da pobreza estética dos anos 50 na URSS. Essa aproximação do artista com o proletariado, um enriquecendo o outro, é explicitada em uma seqüência, elaborada com montagem paralela. Vemos a imagem do operário trabalhando e do menino tocando violino. O som da máquina e o do instrumento preenchem o quadro. Na cena seguinte, o menino, mãos sujas de graxa, com as quais tocou o violino, é repreendido pela mãe. Seu encontro com o operário é abortado pela autoridade familiar. Somente em um sonho-delírio a união poderá ser realizada.


Percebe-se nessas situações a construção de uma postura política crítica em relação a pelo menos dois alvos: uma nova geração desprovida de sofisticação na formação, que reage à vida com ressentimento, e adultos apegados a um rigor conservador, expresso tanto pela mãe como pela professora de música. Nos dois casos, tolhe-se a liberdade, comportamental e artística. A mãe o impede de sair de casa. A professora exige cumprimento do ritmo. Não estamos nessa primeira passada de olho criando paralelos entre esse material e a sociedade no qual foi construído em um momento específico (a sociedade soviética de finalzinho dos anos 50).

Fiquemos por ora na autonomia da diegese. A abordagem política está na tela, sem alegorias ou simbolismos explícitos, embora, quando vemos casas velhas sendo derrubadas e ao fundo avistamos um prédio alto e novo, no qual reflete intenso raio solar, somos convidados a perceber as evidências de mudanças naquele meio onde vivem os personagens. Vira-se uma página, do velho para o novo, embora não saibamos, pelas evidências na tela, nenhum contexto mais amplo, assim como nenhuma informação mais concreta. Também percebemos, ainda pela evidência, que essa mudança, a rigor, está limitada pelas autoridades. É preciso cumprir à risca a convenção musical na aula e obedecer à proibição da mãe de sair de casa. A imaginação, expressa na cena final, seria uma fuga. Ou melhor: um concerto para o mundo.


Mas esse não é um filme qualquer, mas um média-metragem de Tarkovski, realizado poucos anos antes de A Infância de Ivan, sua estréia em longa-metragem. O cineasta faria apenas outros cinco até se despedir com O Sacrifício. Em virtude do conhecimento de suas obras posteriores, tendemos a ver em sua primeira experiência sinais de traços estilísticos depois melhor elaborados, ou ainda características menos comuns em sua filmografia. Também somos tentados a identificar a postura crítica com as autoridades, quando tinha 28 anos e nada no currículo fílmico, que antecipa as lutas do artista contra a burocracia e a censura soviéticas. Há nesse trabalho de faculdade alguns componentes trakovsvianos.

Em relação a A Infância de Ivan, sua "estréia oficial" (definido por Jean Paul Sartre como "surrealismo socialista"), a aproximação é imediata, não sem distinções para cada um dos títulos. Não é aleatória a opção por dois desfechos situados no terreno da imaginação, onde os limites do real são corrigidos não sem perda do olhar crítico. Percebe-se nessa libertação pela arte ecos de Invitation to a Beheading, de Nabokov, livro publicado em fascículos em 1932, no qual o protagonista, Cincinnatus C resiste à asfixia política pela escrita. Seu heroísmo não está em ações com metas coletivas, mas em resistir a ser como os outros. A recusa em atender o que esperam dele, para assim não compactuar com um sistema produtor de iguais, faz do personagem um rebelde disposto a não conceder.


Há outra aproximação com A Infância de Ivan. Ambos têm como protagonistas uma criança, embora, no longa-metragem, a rebeldia já esteja sedimentada no menino, ao contrário de em O Rolo Compromessor e o Violinista, no qual o espírito subversivo ainda está para brotar, ou melhor, brota apenas na imaginação. De qualquer forma, ao optar por crianças (ou pelo futuro em gestação), mas sem lhes dar obviamente otimismo, o cineasta revela, sem meias luzes, ceticismo no mundo concreto e crença na arte, não expressando isso, contudo, em forma de pregação. "Eu não dirigi nenhuma mensagem à Rússia porque não sou um profeta, nem faço parte dos artistas com discursos semelhantes aos de fiéis em uma catedral" (1).


Sem tanta freqüência e vigor no rompimento com o mimetismo, como já ocorre em A Infância de Ivan, mas já incorporando a obsessão pela água como reflexo de imagens (presente com mais força em A Infância de Ivan, Solaris e Nostalgia), a busca de uma imagem não naturalista e a construção de um mundo com estatuto próprio, O Rolo Compressor e O Violinista apresenta um cineasta com olho apurado, contemporâneo do início de outros autores dispostos a retrabalhar a linguagem (Jean-Luc Godard, Píer Paolo Pasolini, Alain Resnais), que se desvia da tradição do cinema soviético, priorizando o subjetivo ao coletivo, com fio condutor individual, capaz de carregar um mundo em sua visão. O fato do mentor de Tarkovski no Instituto Estatal de Cinematografia ter sido Mikhail Romm, discípulo de Eisenstein, não promoveu nenhuma aspiração nele de tornar-se herdeiro eisensteiniano. Pelo contrário: seu fundamento estético é o plano, o tempo da cena, "a pressão interna da imagem", não a montagem-choque, ou o encadeamento violento, com sua indução didática ou alucinatória, como praticavam Eisenstein e Vertov.


Em certa medida, Tarkovski reagiu a seu tempo (sociedade e cinema). Sua formação cinefilíca, nos anos 40, foi muito pobre. O realismo soviético instaurado nos anos 30, ainda durante sua infância, havia matado a arte em nome da propaganda política. A fase final de Pudovkin, por exemplo, tinha pouca indagação estética e, de forma geral, acomodado em um estilo reacionário, o cinema soviético, antes revolucionário na forma (mais que no conteúdo), aburguesara-se (na forma) e mumificara-se (no conteúdo). O regime comunista também já não iludia mais os artistas. Tarkovski, de certa maneira, responde a isso. Nada da papagaiada realista, com seu slogan mentiroso de se mostrar a realidade como é , ou, na verdade, como queriam que ela fosse, de acordo com conveniências do PC. Seu cinema é alérgico a programas e à missão de reproduzir a realidade (ou de se representar a realidade de forma distorcida para vendê-la como imitação fiel dos fatos e dos contextos). Isso não significa que, por nortear-se pela moral e não pela ideologia (como preconizava Godard), tenha abortado uma visão política. Essa está lá, nas imagens, basta enxergar.


(1) Entrevista concedida ao France Culture em 7-1-86
Cléber Eduardo

 

 

 

TEXTO ORIGINAL EM> CONTRACAMPO

Entulho Cósmico

Toda a palavra é um verso e todo o verso é um infinito

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