Boicote à Cultura Policial

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Hakim Bey


Se podemos dizer que um personagem ficcional tem dominado a cultura popular atual, esse personagem é o policial. Os meganhas desgraçados estão em todo lugar. É pior do que na vida real. Que chateação incrível.
Policiais poderosos – protegendo os manos e humildes – à custa de mais ou menos meia dúzia de artigos da declaração dos Direitos Civis – "Dirty Harry". Ótimos policiais, humanos, lidando bem com a perversidade humana, agridoces, você sabe, durões e arrogantes, mas mesmo assim, meigos por dentro: Hill Street Blues – o mais maléfico programa de TV de todos os tempos.
Tiras negros sabichões fazendo observações espirituosas e racistas contra tiras brancos e jecas, mas todos se amando no final – Eddie Murphy, traidor da classe. Numa dessas histórias masoquistas, vemos policiais corrompidos que ameaçam implodir nossa Realidade Konfortável e Konsensual, como tênias solitárias desenhadas por Giger, mas que naturalmente são detonados na hora H pelo último policial honesto, Robocop, amálgama ideal de próteses e pieguice.
Somos obsediados por policiais desde o início – mas os guardas de outrora atuavam como tolos empavonados. Car 54, Where Are You?, trouxas feitos na medida para serem arrasados e ridicularizados por Fatty Arbuckle ou Buster Keaton. Mas, no drama ideal dos nossos dias, o "pequeno homem", que uma vez detonou centenas de varejeiras azuis com aquela bomba anarquista inocentemente usada para acender um cigarro – o Vagabundo, a vítima com o repentino poder do coração puro –, não tem mais um lugar no centro da narrativa. Antes, "nós" éramos aquele vagabundo, aquele herói caótico quase surrealista que, através do wu-wei, sai-se vitorioso sobre ridículos meganhas de uma Ordem irrelevante e desprezível. Mas, agora, "nós" estamos reduzidos ao status de vítimas sem poder, ou criminosos. Já não representamos o papel principal; já não somos os heróis de nossas próprias histórias, fomos marginalizados e substituídos pelo Outro, o policial.
Dessa forma, o show policial possui apenas três personagens – a vítima, o criminoso e o policial –, mas os dois primeiros não logram ser completamente humanos – apenas o meganha é real. Estranhamente, a sociedade humana de agora (como percebida pelas outras mídias) algumas vezes parece ser constituída pelos mesmos três clichês/arquétipos. Primeiro, as vítimas, as minorias chorosas reclamando por seus "direitos" – e, por deus, quem não pertence a alguma "minoria" hoje? Porra, até mesmo os meganhas reclamaram que seus "direitos" estavam sendo infringidos. Depois, os criminosos: em sua maioria, não brancos (apesar da obrigatória e delirante "integração" mostrada pela mídia), muitos pobres (ou então obscenamente ricos, e portanto ainda mais distantes) e pervertidos (isto é, os espelhos proibidos de "nossos" desejos).
Ouvi dizer que uma em cada quatro casas nos Estados Unidos é assaltada todo ano e que todo ano cerca de meio milhão de pessoas são presas só por fumar maconha. Diante de tais estatísticas (mesmo pressupondo que elas não passam de "mentiras deslavadas"), perguntamos a nós mesmo quem NÃO é vítima ou criminoso em nosso estado-de-consciência-policial. Os detetives policias devem fazer a mediação por todos nós, por mais que a interface seja obscura – eles são apenas sacerdotes-guerreiros, embora profanos.
O America's Most Wanted – o programa de TV mais bem-sucedido dos anos 1980 – possibilitou para todos nós o papel de tira amador, até então uma mera fantasia da mídia produzida pelos sentimentos de ressentimento e vingança da classe média. Naturalmente, ninguém é mais odiado pelo policial da vida real do que aqueles que resolvem cuidar da própria comunidade – veja o que acontece à s iniciativas de autoproteção comunitária de vizinhanças pobres e/ou não brancas, como os muçulmanos que tentaram eliminar o tráfico de crack no Brooklyn: os tiras afugentaram os muçulmanos, os traficantes ficaram livres. Vigias de verdade ameaçam o monopólio do cumprimento da lei, lèse majesté, o que é mais abominável do que incesto ou assassinato.
Mas os vigilantes da mídia (mediados) funcionam perfeitamente bem dentro do estado Policial. De fato, seria mais acurado considerá-los informantes não pagos (eles nem mesmo possuem um conjunto de malas que combinam!): emissários telemétricos, pombos eletrônicos, dedos-duros por um dia.
O que é que a "América mais procura"? Essa frase refere-se aos criminosos – ou a crimes, a objetos de desejo em sua presença real, não representados, não mediados, literalmente roubados e apropriados? A América mais procura... dar um "foda-se" para o trabalho, abandonar o casamento, drogar-se (porque somente as drogas fazem você se sentir tão bem quanto as pessoas que aparecem nos comerciais de TV parecem se sentir), fazer sexo com ninfetas núbeis, sodomia, arrombamentos, sim, o inferno! Quais prazeres não mediados NÃO são ilegais? Até mesmo churrascos ao ar livre violam regulamentos sobre emissão de fumaça, hoje em dia. As diversões mais simples acabam por infringir alguma lei; por fim, o prazer torna-se estressante, apenas a TV permanece – e o prazer da vingança, a traição vicária, a emoção doentia do mexerico. A América não pode ter o que ela mais procura, então, em vez disso, ela tem o America's Most Wanted. Uma nação de bobalhões ginasianos lambendo o rabo de uma elite de brutamontes ginasianos.
É claro que o programa ainda sofre de algumas poucas e estranhas distorções da realidade: por exemplo, os segmentos dramatizados são interpretados no estilo cinema-verdade por atores; alguns telespectadores são tão estúpidos que acreditam que estão assistindo a uma filmagem real de crimes reais. Por isso, os atores são continuamente importunados e mesmo presos, junto com (ou no lugar de) os verdadeiros criminosos cujas fotos de identificação são exibidas depois de cada pequeno documentóide. Que curioso, não? Ninguém experimenta nada de verdade – todos estão reduzidos ao status de fantasmas – imagens da mídia se descolam e se deslocam de qualquer contato com a vida real de cada dia – telessexo – sexo virtual. A transcendência final do corpo: cibergnose.
Os policiais da mídia, assim como os seus precursores televangélicos, preparam-nos para o advento, a vinda final ou o Êxtase do estado policial – as "guerras" ao sexo e à s drogas – controle total e totalmente esvaziado de qualquer conteúdo; um mapa sem coordenadas, em nenhum espaço conhecido; muito além do mero Espetáculo; puro êxtase ("permanêcia-fora-do-corpo"); simulacro obsceno; violentos espasmos sem significado elevados ao último princípio de governo. A imagem de um país consumido por imagens de ódio a si mesmo, guerra entre as metades esquizóides de uma personalidade dividida, Super-Ego contra Id Kid, para o campeonato de pesos pesados de uma paisagem abandonada, queimada, poluída, vazia, desolada, irreal.
Assim como o romance policial é sempre um exercício de sadismo, o seriado policial, sempre envolve a contemplação do controle. A imagem do inspetor ou detetive mede a imagem de "nossa" falta de substância autônoma, nossa transparência ante o olhar fixo da autoridade. Nossa perversidade, nossa impotência. Não importa se o consideramos "bons" ou "maus", nossa invocação obsessiva dos espectros policiais revela a extensão da nossa aceitação da perspectiva maniqueísta que eles simbolizam. Milhões de meganhas minúsculos formigam em toda parte, como larvas de fantasmas famintos – eles enchem a tela, como no famoso filme de Keaton, abarrotando o primeiro plano, uma Antártica onde nada se move a não ser multidões de sinistros pingüins azuis.
Propomos uma exegese hermenêutica e esotérica do slogan surrealista "Mort aux vaches!" (1) Não o usamos ao nos referir à morte de policiais individuais ("vacas", na gíria da época) – o que seria uma mera fantasia de vingança esquerdista – sadismo mesquinho à s avessas –, mas à morte da imagem do policial, o Controle interior e suas miríades de reflexos no Lugar Nenhum da mídia – o "quarto cinza", como Burroughs o chama. Autocensura, medo do próprio desejo, "consciência" com a voz interiorizada da autoridade consensual. O assassínio dessas "forças de segurança" de fato libertaria uma enchente de energia libidinosa, mas não a violenta irrupção prevista pela teoria da Lei e da Ordem.
A "auto-superação" nietzschiana provê o princípio da organização para o espírito livre (e também para a sociedade anarquista, ao menos em teoria). Na personalidade do estado policial, a energia libidinosa é represada e desviada para a auto-repressão; qualquer ameaça ao Controle resulta em espasmos de violência. Na personalidade do espírito livre, a energia flui desimpedida e portanto turbulenta, mas gentil – o seu caos encontra o seu estranho atrator, permitindo que novas ordens espontâneas surjam.
Sendo assim, clamamos por um boicote à imagem do Policial e por uma moratória da sua produção na arte. Sendo assim...



MORT AUX VACHES!



Nota



"Mort aux vaches!" significa "Morte às vacas" (N.R.)

Entulho Cósmico

Toda a palavra é um verso e todo o verso é um infinito

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