“Eu não sei o que veio antes ou depois. Não consigo distinguir o ontem do amanhã e isso está fodendo com a minha cabeça.” Essa fala da personagem de Laura Dern, que acontece por volta das duas horas do total de três do longa-metragem, surge como um bem-vindo perdão ao espectador completamente desnorteado pelos saltos no tempo, no espaço, na história e nas personalidades da protagonista, que se empilham por minuto. É também tudo o que o espectador não deveria ouvir: quando a impossibilidade de resolução é reconhecida, o espectador perde por completo a rede de segurança. Aqui temos o diretor assumindo ao público que o barco está desgovernado e insinuando que tanto o criador quanto o receptor encontram-se igualmente reféns de um universo sombrio, vivo e independente. Não haverá ninguém para nos resgatar. Hollywood precisa fabricar passado e futuro no presente para realizar obras que ficam suspensas no tempo. Uma vez pronto, o filme é uma entidade que passa a existir na dimensão cinematográfica, onde nunca mais envelhece, nunca mais morre, mas de vez em quando é esquecido. E quando isso acontece, remakes são providenciados. Diferentes das montagens teatrais (uma vez que o teatro é sempre acontecimento real, nunca é ilusão), o remake cinematográfico, uma vez realizado, é lançado para a mesma dimensão que o seu original. Remakes são justificados de várias formas: podem ser atualizações de clássicos muito bem amados para gerações deslumbradas com os astros da contemporaneidade, ou apresentarem evoluções técnicas que trariam o filme muito mais perto da visão originalmente concebida pelo diretor. Crise de identidade, auto-questionamento, o filme original se defronta com seu remake e se questiona o motivo de ter sido substituído: não era bom o bastante? Era mal feito? Foi ultrapassado? Filmes são as fundações sobre a qual Hollywood se sustenta e remakes não são uma mera reforma, mas a substituição completa do esqueleto estrutural da indústria cinematográfica em questão. Nesse constante reinventar, temos o risco da perda de referência, uma esfera definida por um estado de esquizofrenia galopante (afinal, sua realidade é a fabricação de ilusões) que se auto-sustenta, que se auto-consome, regida por leis e gramática próprias, na qual o tema dos filmes deixa de ser a vida, mas os próprios filmes. A fantasia deixou de ser as aventuras na tela, mas todo o universo além-tela: o indivíduo idealiza-se celebridade, estar não na ação fantasiada e sim no processo de fabricação da ação. Não por acaso, "INLAND EMPIRE" começa com uma imagem familiar: uma imagem chuviscada de uma televisão fora de sintonia, a mesma forma que o diretor abre "Twin Peaks: Os Últimos Dias de Laura Palmer". De dentro dessa imagem, surge uma transmissão de "Rabbits", sitcom de Lynch anteriormente só disponível na Internet (e a sobreposição do cenário da sitcom com a habitação primeira da personagem de Dern já indica o intercâmbio sem barreiras alfandegárias entre real e perturbação mental). Os bastidores da boate de burlesque são cobertos por cortinas vermelhas tal qual a famosa sala dos sonhos do Agente Cooper no seriado televisivo. Até os créditos finais, personagens de outros filmes poderão reaparecer aqui. Remake. Referência. Reaproveitamento. Nenhuma das obras de Lynch é encerrada, mas permanece viva na cabeça de seu autor como um sonho ainda a ser decifrado e sonhos subseqüentes que pegam emprestados momentos dos anteriores, auxiliando na sua compreensão ou transformando o seu sentido por completo. Artífices presos dentro do turbilhão, David Lynch e Laura Dern encontraram numa Sony PD-150 (uma câmera digital de nível profissional, mas de preço acessível ao consumidor, daí o termo "prosumer") o escafandro para o mergulho mais profundo no subconsciente em toda obra cinematográfica de ambos. "INLAND EMPIRE" é um jogo de associações regido pela maior liberdade tanto na sua fabricação quanto na sua recepção, ao que, sem uma linha clara, Lynch e os atores decidiam casualmente que cenas filmariam juntos meros minutos antes de ligarem as câmeras. O resultado final é um exercício exasperante e perturbador, igualmente irritante e hipnotizante, mas em nenhum momento irresponsável: cada cena se liga com as anteriores numa teia complexa demais para ser concebida propositalmente, como ordenadas por uma lógica indescritível. Se Lynch revela que ele não é tão refém assim das maquinações independentes da mente (há uma reviravolta "acordada" demais em seus minutos finais e que revela um tecido narrativo pré-concebido – isso não é uma negação direta do que afirmo no final do primeiro parágrafo, mas coloca a possibilidade de interpretação proposta em cheque), ele parece menos um auteur malicioso e mais solidário com a angústia do espectador ao tentar ele mesmo aplicar uma interpretação possível a toda enxurrada de imagens assombrosas (e nunca Lynch chegou tão perto de fazer um filme de horror assumido como aqui; uma das cenas finais que envolve um confronto armado entre Laura Dern e seu marido polonês no corredor azulado de uma espécie de hotel parece impressa diretamente de um pesadelo febril - e o longa está repleto de idéias visuais de fazer a pele formigar). Não seria a primeira vez. Se "INLAND EMPIRE" alonga-se por 3 horas, isso é reflexo da liberdade técnica e artística que o formato digital lhe permitiu. David Lynch constantemente foi obrigado a terminar suas obras com finais artificiais, enganadores, talvez até improvisados, abruptos: falo do final criado para a versão VHS do piloto de "Twin Peaks" que sugeria um assassino próprio e fechava-se enquanto um longa-metragem independente do seriado televisivo, falo do final de “Mulholland Drive" (do qual "INLAND EMPIRE" pode ser considerado obra-irmã, já a partir mesmo de sua referência titular a Los Angeles: o título refere-se à área ao sudeste de Los Angeles que apreende as cidades mais antigas da região), anexado a um piloto de um seriado não-aprovado e também transformado em longa-metragem, assim recebendo um destino muito mais generoso do que o ostracismo reservado a tantos projetos como esse. O que era apenas um projeto casual - iniciado a partir da cena entre Dern e seu sombrio psiquiatra mudo - se revelou um projeto de fascínio para o diretor que continuou explorando o significado da trama através da filmagem de mais cenas, inicialmente instintivas e sem relação obrigatória com um todo. As 3 horas são o produto final de dois anos e meio de pesquisa cinematográfica em sua melhor forma: a filmagem. Lynch é capaz de explorar o pesadelo com pesquisa de campo. Um filme inacabado é também o desafio da personagem de Dern, uma atriz caída no ostracismo que consegue um papel no longa enigmaticamente intitulado “On High In Blue Tomorrows”, ao lado do galã interpretado por Justin Theroux. Ao longo das filmagens, eles descobrem estar trabalhando num remake... ou quase: o roteiro, baseado numa fábula cigana e originalmente intitulado em alemão “Vier Sieben” (47), que seriam números malditos, já teria inspirado um filme que nunca foi acabado, uma vez que a atriz enlouquecera durante a produção. A própria história do filme não terminado – vivida repetidas vezes por Lynch durante sua carreira, como já falamos – é um dos folclores mais populares na indústria cinematográfica norte-americana: podemos citar como exemplos “Four Men On A Raft” de Orson Welles, “Dark Blood” de George Sluizer (interrompido pela morte de River Phoenix), ou até mesmo “The Brave”, roteiro considerado maldito pelos produtores (o ator principal teria morrido de conseqüências misteriosas) e por isso mesmo escolhido por Johnny Depp para ser seu primeiro (e curioso) filme enquanto diretor. Um filme inacabado lança uma aura maléfica em cima de todos os envolvidos, como se abrisse um portal para uma outra dimensão ou que fundisse as esferas do real e do imaginário/fabricado. Ou pelo menos, coloca suas carreiras em suspenso. A Hollywood construída na primeira parte de “INLAND EMPIRE” é uma impossível de ser real, uma vez que concentra a maioria dos cameos célebres em aparições de pequena importância, como se insinuasse um universo onde o anunciante de programa de TV não poderia ser ninguém outro do que William H. Macy. Ou a apresentadora trash de programa de entretenimento não poderia ser nenhuma outra do que Diane Ladd (retornando à companhia de Lynch e sua filha Dern após “Coração Selvagem” – sinto-me tentado a relembrar a insubordinação de Ladd, quando sua filha foi parar no blockbuster “O Parque dos Dinossauros”, aceitando o papel de cientista no oportunista “Carnossauro” de Roger Corman, dispondo-se a pôr um ovo gigante em cena, mesmo embora essa anedota nada acrescente à análise). Tal mundo contrastará diretamente com aquele povoado por imigrantes poloneses, prostitutas fantasmagóricas, casas de subúrbio e nenhum glamour, contraste tamanho que virá a negar por completo a existência dos personagens – que podem ser ou não idealizações de protagonistas invisíveis. “INLAND EMPIRE” rompe o complexo projeção-identificação enfiando-lhe ao meio um espelho deformador, separando-o em duas realidades nada ideais, odiosas, aterrorizantes. Lynch encontra em Dern o “cavalo” ideal para submeter às suas manipulações e poucas vezes se viu um ator se permitir afetar-se tão profundamente pelo subconsciente de terceiros. A gradual demolição do universo de fantasia do filme está imediatamente representado na forma como o rosto de Dern parece se derreter na tela. Não surpreende a feiúra estética de grande parte dos momentos de “INLAND EMPIRE”, fazendo a produção aparentar os valores de um filme de terror tipo Z feito no quintal de casa por um bando de adolescentes (afinal, esta é uma produção que a StudioCanal resolveu bancar mesmo com o diretor admitindo que não sabia o que estava fazendo e tendo como equipe estagiários e universitários recém-graduados), mais do que ela é encorajadora, contrastando com os planos-assinatura de Lynch – sempre envolvendo luzes vibrando por um mau contato que pode ser elétrico ou espiritual. O efeito, pela textura do novo meio, é diferenciado: o vídeo digital tenta simular o efeito cinematográfico não através do “flickering” da projeção 24fps, mas com a suavidade das linhas nos movimentos. Película e Vídeo Digital têm diretrizes diferentes para induzir o efeito hipnótico no espectador e é necessário dizer que o segundo ainda não o alcançou com sucesso. “INLAND EMPIRE” é um filme mais assustador do que “Mulholland Drive” pela aspereza e imediatismo na sua textura que traz aquele universo sombrio para o nível do real, ao que o filme anterior, até nos seus momentos mais aterradores, preservava aquela artificialidade tão idealizada pelo cinema em sua encarnação clássica, permitindo ao espectador um afastamento saudável, mas que o mantinha numa esfera segura. Se o diretor declarou publicamente que jamais voltará a produzir filmes em película novamente (mesmo embora eu pessoalmente acredite que é possível que ele retire o que disse em algum momento futuro e retorne aos “velhos métodos”; para falar a verdade, eu até espero que isso aconteça), imagino que seja tanto pelas facilidades e liberdades que o Vídeo Digital lhe permite, como também pelo efeito final se aproximar muito mais do que ele almejava: mais delírio do que devaneio. Tudo é auxiliado por um design de som cujos graves vibram caixa afora, como se as placas tectônicas da Califórnia estivessem finalmente se acomodando para o grande choque que a separará do continente. Talvez o grande terremoto seja a expressão psicossomática da artificialidade hollywoodiana do estado, uma dimensão paralela não apenas dos EUA, mas de todo o planeta. David Lynch acredita na maldição e não se permitirá ser afetado por ela. No que parece um grande exorcismo, Lynch termina “INLAND EMPIRE” com o maior final capaz de conceber, uma despedida em grande escala do redemoinho (ao que tudo indica, uma interpretação bastante peculiar de “Alice no País das Maravilhas”, tocas de coelhos e tudo o mais), ao que seus créditos finais envolvem dança contemporânea, Ben Harper (marido de Laura Dern), um orangotango de circo e um lenhador, todos dentro de uma mansão ao som de “Sinner Man” na voz de Nina Simone. Num universo cinematográfico reinado pela caretice de pontos finais, David Lynch escolhe deixar o espectador mais atônito ainda ao colocar em exposição sua habilidade sobrenatural de transformar pontos de interrogação em uma única e gigantesca exclamação. Joseph Mankiewicz disse: “A única diferença entre um filme e a vida real é a que o filme tem que fazer sentido.” Assim sendo, “INLAND EMPIRE” é inegavelmente vida pura, bruta, terrível. “INLAND EMPIRE” EUA/França/Polônia, 2006. 180min. Direção: David Lynch. Estrelando: Laura Dern, Justin Theroux, Jeremy Irons, Peter J. Lucas, Julia Ormond, Gracie Zabrinski, Harry Dean Stanton. Distribuidora: StudioCanal/Absurda/Ryko Entertainment (DVD).Site oficial: http://www.inlandempirecinema.com/
Fonte: Zeta Filmes
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